sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Filhas de Lilith: a construção social das mulheres a partir dos mitos lilithianos

 

Lilith como a Senhora das Bestas, representação Suméria de cerca de 2000 AEC.

Este ensaio procura refletir sobre a figura de Lilith, a partir dos mitos presentes na obra O livro de Lilith. O resgate do Lado Sombrio do Feminino Universal, de Barbara Koltuv (2017). Lilith foi dita a primeira mulher, a assassina de crianças, a esposa de demônios, a que se aproveita dos homens durante a noite com sua fatal sedução e, até mesmo, aquela que recusou a se deitar por baixo do homem durante a relação sexual. Não são poucas e nem recentes as histórias envolvendo Lilith, personagem presente em diversas mitologias (como a suméria, assíria, babilônica, persa, entre outras) e que sempre aparece em contraposição à bondade e masculinidade de Deus. Tal força que emana dela é um ponto de partida para refletirmos não só sobre a figura de Lilith em si, mas também sobre a construção histórica do estereótipo da mulher e sobre a Lilith que ainda vive dentro de cada mulher.
A autora inicia seu estudo tendo como ponto de partida o Zohar . Segundo ela, a origem de Lilith é tão antiga quanto o surgimento da própria Terra. Quando a Lua e o Sol foram criados ambos tinham a mesma luz, porém os dois não se sentiam à vontade ao conviverem juntos e Deus, prontamente, ordenou que a Lua se afastasse, o que fez com que ela perdesse o seu brilho. Essa diminuição da luz da Lua teve como resultado uma k’lifah (ou casca do mal), da qual teria nascido Lilith que, por esta razão, também é chamada de Lua Negra. Diz o Zohar que, após este acontecimento, Lilith foi expulsa do céu e enviada a Deus para conviver com a humanidade. Nas palavras de Koltuv (2017, p. 27): “Com o advento do patriarcado, o poder de vida e morte tornou-se uma prerrogativa do Deus masculino, enquanto a sexualidade e a mágica foram separadas da procriação e da maternidade.”.
Na tradição bíblica, mais especificamente em Gênesis 1:27, consta que “Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, à imagem de Deus o criou, macho e fêmea os criou”. Em Gênesis 2:18, porém, está escrito que:

Jeová Deus disse: ‘Não é bom que o homem esteja só. Eu lhe farei uma ajudante’ […] Então Jeová Deus fez o homem cair num sono profundo. E enquanto ele dormia, tomou uma de suas costelas e envolveu-a com carne. Da costela que tomara de Adão, Jeová Deus fez uma mulher e conduziu-a ao homem.

No mesmo versículo Adão responde que: “Esta sim é osso dos meus ossos / e carne da minha carne!”. Uma possível interpretação para tal passagem é que, antes de Eva, a mulher feita da costela de Adão, haveria sido criada outra mulher, produzida de barro e, portanto, igual ao homem. Apesar do nome de Lilith só ser citado em livros apócrifos , acredita-se que ela possa ser a primeira mulher que Gênesis 1:27 narra.
Assim como Eva é conhecida por ser a responsável pela queda do homem e pelo pecado original, Lilith é vista também como uma figura sedutora e diabólica. O Zohar associa sempre Lilith e Eva em sua pecabilidade e “adverte, repetidas vezes, que os homens, ao encontrar uma mulher, devem se precaver contra Lilith sedutora.” (KOLTUV, 2017, p.95). Segundo o Zohar, Adão depois da queda teria feito a penitência de ficar durante 130 anos sem ter relações com Eva:

Durante esse tempo, Lilith visitou Adão enquanto ele dormia sozinho, sonhando, e se satisfazia, montada nele, provocando-lhe poluções noturnas. […] O Zohar prossegue dizendo que Lilith se esconderá nos vãos das portas, em poços e latrinas, e continuará a desencaminhar os homens até o dia do juízo final. (KOLTUV, 2017, p. 68-69)

A relação de Lilith e Adão também é comentada no Alfabeto de Ben Sira , o material bibliográfico mais antigo referente à Lilith e que afirma que ela é a primeira mulher criada por Deus. Segundo Ben Sira:

Deus criou Lilith, a primeira mulher, do mesmo modo que havia criado Adão, só que ele usou sujeira e sedimento impuro em vez de pó ou terra. Adão e Lilith nunca encontraram a paz juntos, Ela discordava dele em muitos assuntos e recusava-se a deitar debaixo dele na relação sexual, fundamentando sua reivindicação de igualdade no fato de que ambos haviam sido criados da terra. Quando percebeu que Adão a subjugaria, proferiu o inefável nome de Deus e pôs-se a voar pelo mundo. Finalmente passou a viver numa caverna no deserto, às margens do Mar Vermelho. Ali, envolveu-se numa desenfreada promiscuidade, unindo-se com demônios lascivos e gerando, diariamente, centenas de Lilim ou bebês demoníacos. (apud KOLTUV, 2017, p. 40)

Lilith e Eva, as duas primeiras mulheres

Apesar de também ter sido criada da terra, Lilith tem consciência de que não é matéria inerte e se recusa a viver para sustentar Adão. Ela é a que se nega a uma vida de dependência e submissão e a que igualmente se recusa a se deitar por baixo. Lilith quer igualdade e o poder de ir, vir e agir por si. Ela é “aquela qualidade pela qual uma mulher se nega a ser aprisionada num relacionamento.” (KOLTUV, 2017, p. 44) e que luta para romper com o patriarcado. Eva, pelo contrário, não consegue alcançar a liberdade que Lilith tanto almeja, ela “sente-se acorrentada à Terra pelos homens e pelos filhos” (KOLTUV, 2017, p. 124). Dessa forma, Eva e Lilith vivem dentro de todas as mulheres que, por um lado, querem estabelecer uma família e cuidar dos filhos e, por outro lado, gerar ideias e projetos.
Também são diversos os mitos que falam sobre a permanência de Lilith no deserto após ter fugido de Adão. Muitos deles convergem ao relatar a existência de duas Liliths, que supostamente fazem referências a duas das quatro faces da Deusa e, consequentemente, da Lua da qual Lilith teria nascido : a Lilith-Avó, esposa de Samael, rei dos demônios, e a Lilith-Moça, esposa de Ashmodai, que também é rei dos demônios. De suas três relações (Adão, Samael e Ashmodai), Lilith teria dado origem a um exército de espíritos, demônios e Lilim, que teriam sido capazes de destruir o mundo.

Representação de Lilith feita por Günther Zainer, provavelmente do ano 1473 EC


Outra versão cabalística da história conta que as duas prostitutas que apareceram diante do Rei Salomão para disputar seus filhos recém-nascidos eram Lilith, a estranguladora de bebês, e Igrat, a sedutora do Rei Davi. Segundo o mesmo mito, ambas as mulheres, juntamente com Mahalath e Naamah, teriam sido as responsáveis por estrangular o filho de uma mulher sunamita. Como bem mostra Koltuv (2017, p. 125-126), Lilith é uma figura bastante contraditória neste quesito: ela brinca com os bebês enquanto eles dormem, entrelaçando seus cabelos, fazendo-lhes cócegas e provocando risos e bons sonhos, porém, Lilith também é a que provoca epilepsia e morte nas crianças. Em uma época em que a ciência não explicava os natimortos e a mortalidade infantil, a justificativa dada era divina e feminina.
Atualmente, Lilith não é mais considerada a responsável pelos males das mulheres, da humanidade e das crianças, mas sim parte de um ciclo que é natural e sagrado:

Eva é o lado do feminino instintivo que nutre a vida, enquanto Lilith é o seu oposto, aquele que lida com a morte. Diz-se que as filhas de Eva estão sujeitas à dor de Lilith a cada diminuição da Lua. Lilith rege os Equinócios e os Solstícios. Do mesmo modo que Hécate, seus poderes são superiores nas encruzilhadas instintivas da vida de uma mulher: na puberdade, em cada menstruação, no início e no fim da gravidez, da maternidade e da menopausa. (KOLTUV, 2017, p. 118-122)

Com esse breve repasso dos mitos lilithianos desenvolvidos até aqui a partir da obra de Barbara Koltuv, sobressai o fato de que estas histórias foram criadas, em grande parte, por religiosos do Velho Testamento, judeus, acerca da imagem da mulher. Estas histórias serviam como método de disciplinamento do comportamento e do corpo feminino. Quando ocorre a inquisição feita pelos católicos e, portanto, homens do Novo Testamento, apesar da mudança de religião a tática de disciplinamento das mulheres permaneceu a mesma.
No período da inquisição a associação das mulheres com a figura do Diabo, a crença de que elas tinham poderes sobrenaturais e que eram portadoras de fatal sedução permaneceu a mesma que havia sido moldada durante o judaísmo. Os cristianismos católico e protestante, porém, foram além, uma vez que não só criaram estes mitos sobre a mulher maldita, como também matavam e puniam quem não seguisse a ordem vigente sobre como deveria ser o comportamento feminino. Silvia Federici (2017, p. 314) mostra muito bem como a inquisição católica levou a uma verdadeira caça às mulheres e criou a figura da bruxa, associada às mulheres comuns, que detinham o conhecimento sobre o seu próprio corpo e sobre os ciclos da vida:

Embora a caça às bruxas estivesse dirigida a uma ampla variedade de práticas femininas, foi principalmente devido a essas capacidades – como feiticeiras, curandeiras, encantadoras ou adivinhas – que as mulheres foram perseguidas, pois, ao recorrerem ao poder da magia, debilitavam o poder das autoridades e do Estado, dando confiança aos pobres em sua capacidade para manipular o ambiente natural e social e, possivelmente, para subverter a ordem constituída.

Essas mulheres ditas bruxas, em síntese, eram um problema para a inquisição por serem insubordinadas. O mesmo ocorre com Lilith, que traz à luz questões discutidas até hoje: o prazer feminino desta mulher que quer se deitar por cima do homem, a decisão da mulher para partir, a igualdade entre homens e mulheres e a consequente demonização das mulheres que buscam pela sua liberdade. Na realidade, todas nós somos filhas de Lililith e de uma sociedade patriarcal e misógina, visto que teve sua construção fundamentada no controle e no disciplinamento das mulheres.

  1. O Zohar é um livro da parte mística e, portanto, cabalística dentro do judaísmo e traz uma reflexão a respeito da Torá. É interessante ressaltar que a leitura e interpretação do Zohar eram fechadas somente para os grandes sábios da religião (e que necessariamente eram homens), fato este que reitera o caráter patriarcal das religiões monoteístas.
  2. Os apócrifos são livros referentes ao Novo ou Velho Testamento que não foram incluídos na Bíblia pelo Magistério da Igreja Católica. A justificativa para esta exclusão é que estas obras são heréticas, não portam a verdadeira palavra de Deus e tampouco foram reveladas pelo Espírito Santo.
  3. Ben Sira também foi o responsável por escrever o livro apócrifo Eclesiásticos, que pertence ao Velho Testamento. Apesar dessa obra não fazer parte da Bíblia Sagrada canônica, ela era relativamente aceita pelos judeus de Alexandria, fazendo parte, inclusive, dos livros deuterocanônicos presentes na Septuaginta, antiga tradução em grego do Antigo Testamento.
  4. Barbara Koltuv em sua obra não faz a associação das duas fases de Lilith com a Deusa/Lua. São diversos os estudos que abordam o tema do Sagrado Feminino e relatam a essência tripartite da Deusa cultuada principalmente pelo povo Wicca, vide, por exemplo, Barroso (2017). A Lua Crescente é associada à Deusa-Virgem, determinada e responsável por novos começos; a Lua Cheia pela Deusa-Mãe, doadora da vida e grande nutridora; e a Lua Minguante pela Deusa-Anciã, detentora de toda a sabedoria.

Bibliografia
Fotos: Google Imagens
BARROSO, Eduarda Neto de. Resgate do sagrado feminino: Fundamentos e práticas da Wicca. (Trabalho de conclusão de curso). Juiz de Fora: UFJF, 2017. Disponível em: [http://www.ufjf.br/bach/files/2016/10/EDUARDA-NETO-DE-BARROSO.pdf]
FEDERICI, Silvia. O Calibã e a Bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.
KOLTUV, Barbara Black. O livro de Lilith. O resgate do Lado Sombrio do Feminino Universal. São Paulo: Cultrix, 2017.