quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Compreendendo o Tantra



Alexander Berzin, 2002



Primeira Parte: Perguntas e Dúvidas Fundamentais Sobre o Tantra


1 O Significado de Tantra
A Definição da Palavra Tantra
Os ensinamentos do Buda incluem sutras e tantras. Os sutras apresentam os temas básicos da prática para se adquirir a liberação dos problemas recorrentes sem controlo (sânsc. samsara) e, além disso, para alcançar o estado iluminado de um Buda, com a capacidade de ajudar os outros tanto quanto possível. Os temas incluem métodos para o desenvolvimento da auto-disciplina ética, da concentração, do amor, da compaixão e de uma compreensão correta de como as coisas realmente existem. Os tantras apresentam práticas avançadas baseadas nos sutras.
A palavra sânscrita tantra significa o urdume de um tear ou os fios de uma trança. Como os fios de urdume, as práticas tântricas servem como uma estrutura que nos permite entrelaçar os temas do sutra para tecer a tapeçaria da iluminação. Além disso, o tantra combina as expressões físicas, verbais e mentais de cada prática, que se entrelaçam, criando um percurso de desenvolvimento holístico. A prática do tantra é extremamente avançada, uma vez que não podemos integrar e praticar simultaneamente todos os temas do sutra sem termos previamente treinado em cada um deles a nível individual.
A raiz da palavra tantra significa esticar ou continuar sem interrupções. Enfatizando esta conotação, os eruditos tibetanos traduziram o termo como gyu (rgyud), que significa uma continuidade ininterrupta. Aqui, a referência é à continuidade através do tempo, como numa sucessão de momentos num filme, e não à continuidade através do espaço, como numa sucessão de segmentos do pavimento. Além disso, as sucessões discutidas no tantra assemelham-se a filmes eternos: sem princípio nem fim.
Dois filmes nunca são iguais e duas cópias do mesmo filme nunca podem partilhar o mesmo rolo da película. Similarmente, as sucessões intermináveis mantêm sempre as suas individualidades. Além disso, as imagens dos filmes passam uma de cada vez, com tudo a mudar de imagem a imagem. Do mesmo modo, os momentos das sucessões intermináveis são efémeros, com um só momento ocorrendo de cada vez e sem nada de sólido permanecendo através de todas as sucessões.
Continuidades Mentais como Tantras
O exemplo mais proeminente de uma sucessão interminável é a continuidade mental (fluxo-mental), a sucessão interminável dos momentos de uma mente individual. No budismo, mente refere-se a um mero experienciar individual e subjetivo de algo e não a um objeto, físico ou imaterial, que produz o experienciar, ou que seja uma ferramenta que alguém use para experienciar coisas. E mais, uma continuidade mental não é um fluxo de experiências que se acumulam de tal modo que uma pessoa tenha mais experiência do que outra. Uma continuidade mental consiste simplesmente numa sucessão ininterrupta de momentos do funcionamento mental – o mero experienciar de coisas. As coisas experienciadas incluem visões, sons, sentimentos, pensamentos, o sono e até a morte. Mero implica que o seu experienciamento não precisa de ser deliberado, emocionalmente tocante e nem sequer consciente.
E mais, o experienciar de algo é sempre individual e subjetivo. Duas pessoas podem experienciar ver o mesmo filme, mas a sua experiência não seria a mesma – uma pode gostar dele; a outra pode não gostar. O modo como elas experienciam o filme depende de muitos fatores interrelacionados, tais como os seus humores, a sua saúde, os seus companheiros e até as cadeiras em que se sentam.
Seres individuais são aqueles com continuidades mentais. A cada momento da sua existência, eles experienciam algo. Agem com intenção – mesmo se não planeada conceptualmente – e experienciam subjetivamente os efeitos imediatos e a longo prazo do que fazem. Assim, as continuidades mentais dos seres individuais – o seu experienciar das coisas – mudam como eles de momento a momento, e as suas continuidades mentais continuam de uma vida para a vida seguinte, sem princípio nem fim. O budismo aceita como fato não apenas que as continuidades mentais durem eternamente, mas também que elas carecem de um início absoluto, seja a partir da obra de um criador, seja da matéria/energia ou do nada.
Seres individuais e, assim, as continuidades mentais, interagem um com o outro, mas continuam distintos, mesmo na Budeidade. Embora o Buda Shakyamuni e o Buda Maitreya sejam equivalentes nas suas realizações da iluminação, eles não são a mesma pessoa. Cada um tem conexões únicas com seres diferentes, o que esclarece o fato de que alguns indivíduos possam encontrar e tirar benefício de um Buda em particular e não de outro.
Os filmes mantêm as suas individualidades sem requererem ou conterem sinais fixos inatos, tais como os seus títulos, sempre presentes como partes de cada momento, dando aos filmes identidades individuais exclusivamente através dos seus próprios poderes. Os filmes mantêm identidades individuais dependendo meramente de fatores mutáveis interligados, tais como uma sequência sensata de imagens. Do mesmo modo, as continuidades mentais intermináveis continuam [para sempre] sem sinais fixos inatos, tais como almas, eus ou personalidades, que não afetadas e sem nunca mudar, continuam durante uma vida e de uma vida para a vida seguinte e que, através dos seus próprios poderes, lhes dão identidades individuais. Para sustentar as suas identidades individuais, as continuidades mentais dependem meramente de fatores mutáveis interligados, tais como sequências sensatas de experienciar coisas de acordo com princípios de causa e efeito comportamentais (sânsc. karma). Mesmo a um nível mais geral, as continuidades mentais não têm identidades inerentes fixas, tais como: ser humano, mosquito, masculino ou feminino. Dependendo das suas ações, os seres individuais aparecem em formas diferentes em cada vida – às vezes com mais sofrimentos e problemas, às vezes com menos.
O Termo Tantra com Referência à Natureza Búdica
Embora as continuidades mentais, tais como os seres individuais, não tenham almas inatas que através dos seus próprios poderes lhes dêem as suas identidades, elas têm, não obstante, outras características que as acompanham como facetas integrais das suas naturezas. Estas facetas inatas também constituem tantras – sucessões de momentos sem nenhum princípio nem fim. As facetas inatas intermináveis que se transformam nas facetas iluminadoras de um Buda, ou que permitem que cada continuidade mental se transforme na continuidade de um Buda, consistem dos fatores da natureza búdica dessa continuidade.
Por exemplo, as sucessões ininterruptas de momentos de aparência física, comunicação e funcionamento mental (corpo, fala e mente), a operação das boas qualidades e a atividade acompanham a sucessão de momentos de cada continuidade mental para sempre, embora as formas específicas das cinco variem a cada momento. A aparência física pode ser invisível ao olho humano; a comunicação pode ser involuntária ou meramente através da linguagem corporal; e o funcionamento mental pode ser mínimo, como quando estamos a dormir ou inconscientes. As boas qualidades, tais como compreendermos e apreciarmos os outros, e capacidades, podem operar a níveis minúsculos ou podem estar apenas latentes; e a atividade pode ser meramente autónoma. Não obstante, experienciar algo individual e subjetivamente a cada momento envolve ter-se continuamente uma aparência física, uma forma de comunicar alguma informação, um funcionamento mental, um nível operante de boas qualidades e alguma atividade.
O fato de as sucessões ininterruptas dos momentos das cinco facetas inatas acompanharem a continuidade mental de cada ser em cada renascimento esclarece o fato de as sucessões das cinco continuarem a acompanhar a continuidade de cada ser, incluindo a dos Budas. De outro ponto de vista, momentos das cinco continuam a ocorrer em sucessão ininterrupta até depois da iluminação, mas agora as suas formas manifestam-se como as cinco facetas iluminadoras de um Buda. Elas são iluminadoras no sentido em que são os meios mais eficazes para conduzir os outros à iluminação.
Sucessões Sem Princípio que Podem Ter um Fim
Como tantras, as continuidades intermináveis dos fatores da natureza búdica de um indivíduo entrelaçam-se juntamente para formar, a cada momento, um todo integrado, funcionando juntos como uma rede. Noutro sentido, as continuidades intermináveis constituem os fios de urdume sobre os quais se entrelaçam sucessões de momentos de características acompanhantes extras de continuidades mentais. Muitas características interligadas são também sem princípio, mas nem todas elas continuam para sempre. Algumas podem ter um fim e, assim, não constituem facetas integrais da natureza da continuidade. As mais significativas são: as continuidades sem princípio da confusão sobre como as coisas existem, os hábitos de tal confusão e os problemas e limitações recorrentes que produzem incontrolavelmente. Aqui, para simplificar a discussão, estamos a usar o termo confusão em vez de não-compreensão (ignorância), mas sem nenhuma conotação de desorganização, desorientação ou demência.
As sucessões sem princípio de momentos de níveis diferentes de confusão e dos seus hábitos podem acabar, porque os seus exatos opostos, a sucessão de momentos de compreensão e os seus hábitos, podem substituí-los e removê-los para sempre. Enquanto sucessões de momentos de confusão e os seus hábitos acompanharem as continuidades mentais, os seus fatores de natureza búdica não podem funcionar na sua capacidade máxima. Enquanto as continuidades mentais estiverem nessa condição, os indivíduos denotados por elas continuarão como seres limitados (seres sencientes). Os fatores funcionam a níveis máximos apenas com a remoção total de todas as características limitativas ou “nódoas momentâneas,” ou seja, com a remoção total de todos os níveis de confusão e dos seus hábitos. Quando as continuidades de todas as características limitativas pararem para sempre, os indivíduos deixarão de ser seres limitados. Como indivíduos, as suas continuidades sem fim continuam, mas agora os seres transformaram-se em budas.
As Explicações Nyingma e Kagyu sobre o Tantra
Todas as quatro tradições do budismo tibetano – Nyingma, Kagyu, Sakya e Gelug – aceitam como uma definição de tantra as sucessões eternas de momentos de fatores interligados da natureza búdica. As explicações especiais de cada tradição clarificam o tópico ainda mais e complementam-se umas às outras. Primeiro vamos examinar a apresentação geral partilhada entre Nyingma e Kagyu, uma vez que ela se especializa na discussão do tantra em termos de natureza búdica em geral. As suas apresentações provêm de A Interminável Continuidade Última ( O Eterno Contínuo Último) de Maitreya.
Maitreya explicou que embora as sucessões de momentos de fatores da natureza búdica continuassem para sempre, elas podem ser: não-refinadas, parcialmente refinadas ou totalmente refinadas. A distinção deriva de [três condicionantes]: se sucessões de momentos de todos os níveis de confusão e seus hábitos acompanham ininterruptamente a continuidade mental; se apenas algumas delas o fazem por algum tempo; ou se nenhumas delas nunca mais a acompanham. Estas três condições das continuidades intermináveis de fatores da natureza búdica são os tantras de base , do caminho e resultantes.
Como tantras de base, as continuidades sempre disponíveis de fatores da natureza búdica são os materiais com que trabalhamos para atingir a iluminação. Nesta perspectiva, os fatores são não-refinados ou “impuros” no sentido em que as sucessões de momentos de todos os níveis de confusão e seus hábitos estão sempre entrelaçados com os fatores, limitando o seu funcionamento a vários níveis.
No caminho para a iluminação, os praticantes trabalham para remover as limitações, parando, por fases, as continuidades dos vários níveis de confusão e seus hábitos que se entrelaçam com os seus corpos, comunicação, mentes, boas qualidades e ações. Consequentemente, durante o processo de purificação, as continuidades dos fatores de natureza búdica, como tantras do caminho, são parcialmente refinadas e em parte não-refinadas. Às vezes, períodos de compreensão plena acompanham os fatores; outras vezes, seguem-se períodos com apenas o impulso de compreensão. Ocasionalmente, sucessões de momentos de confusão cessam temporariamente. Depois, as continuidades de alguns níveis resumem, mas gradualmente nenhuma delas retornará para sempre. Similarmente, os hábitos de confusão deixam ocasionalmente de produzir momentos de confusão; mas eventualmente as continuidades dos hábitos cessam para sempre.
Ao nível resultante da Budeidade, as continuidades dos fatores de natureza búdica, como tantras resultantes, são totalmente refinadas no sentido em que estão para sempre completamente livres de períodos acompanhantes de quaisquer níveis de confusão ou dos seus hábitos. Assim, os fatores de natureza búdica funcionam para sempre nas suas capacidades plenas como interligadas facetas iluminadoras de um Buda, por exemplo como as faculdades mentais, comunicativas e físicas iluminadoras de um Buda, assim como as suas boas qualidades e atividades.
O Papel das Figuras Búdicas no Tantra
As figuras búdicas representam os fatores de natureza búdica durante as fases refinadas ou “puras” quando sucessões de momentos de compreensão plena acompanham as suas continuidades. Como asfiguras búdicas têm corpos, comunicação, mentes, boas qualidades e ações que trabalham em conjunto como uma rede integrada, elas são adequadas para representar estes fatores de natureza búdica. Além disso, frequentemente as figuras têm caras, braços e pés múltiplos. O leque das caras e dos membros representam temas do sutra, muitos dos quais também estão entre os fatores de natureza búdica. Os praticantes de tantra usam as figuras na meditação para estimular o processo de purificação.
O termo sânscrito para figuras búdicas, ishtadevata, significa deidades escolhidas, ou seja, deidades escolhidas para a prática da transformação em Buda. São “deidades” no sentido em que as suas capacidades transcendem as dos seres comuns; contudo, elas não controlam as vidas das pessoas nem requerem adoração. Assim, os eruditos tibetanos traduziram o termo como lhagpay lha (lhag-pa'i lha), deidades especiais, para diferenciá-las de deuses mundanos ou de Deus Criador.
O equivalente mais comum em tibetano, yidam (yi-dam), denota mais claramente o significado pretendido. Yi significa mente e dam quer dizer damtsig (dam-tshig, sânsc. samaya), uma ligação íntima. Os praticantes de tantra estabelecem uma ligação com figuras búdicas masculinas e femininas, tais como Avalokiteshvara e Tara, ao se imaginarem a si mesmos como tendo as facetas iluminadoras da aparência física, comunicação, funcionamento mental, boas qualidades e atividades destas figuras. Mais precisamente, enquanto as continuidades dos seus fatores de natureza búdica ainda forem parcialmente não-refinadas, como tantras do caminho, os praticantes vínculam-nas ou enlaçam-nas com as continuidades dos fatores imaginados como facetas totalmente refinadas das figuras búdicas. Mesmo quando os praticantes têm apenas compreensões incompletas em relação a como as coisas existem, o método tântrico geral para remover as nódoas momentâneas dos períodos de confusão e dos seus hábitos das continuidades intermináveis dos fatores de natureza búdica é imaginarem os seus fatores de natureza búdica parcialmente não-refinados funcionando como as facetas totalmente refinadas da figura búdica.
Resumindo, os fatores de natureza búdica continuam sendo os mesmos fatores quer funcionem como tantras de base, do caminho ou resultantes. A continuidade mental manifesta sempre alguma forma de aparência física, comunicação de algo e funcionamento mental, assim como algum nível operante de boas qualidades e alguma atividade. A única diferença é o grau em que as sucessões de momentos de níveis diferentes de confusão e dos seus hábitos acompanham as continuidades dos fatores e limitam o seu funcionamento.
Então, de acordo com as apresentações Nyingma e Kagyu, a matéria do tantra é o entrelaçar das condições da base, do caminho e resultante das continuidades intermináveis dos fatores de natureza búdica para tecer um método a fim de se atingir a iluminação. Especificamente, o tantra diz respeito a métodos para trabalharmos com os períodos dos fatores de natureza búdica enquanto tantras do caminho, de modo a purificarmos as sucessões dos fatores enquanto tantras de base, para que eles funcionem, finalmente, como continuidades intermináveis dos tantras resultantes. A prática tântrica efetua esta transformação ao unir as continuidades dos fatores não-refinados da natureza búdica com as sucessões de momentos da sua situação refinada, como representada pelas facetas iluminadoras das figuras búdicas.
A Apresentação Sakya
A apresentação Sakya do significado do tantra deriva do Tantra de Hevajra, um texto da classe mais elevada do tantra. Esta apresentação explicita a relação entre as figuras búdicas e os seres comuns que permite uma ligação das facetas correspondentes aos dois na prática do tantra.
Um tópico exclusivo ao tantra mais elevado é a continuidade de luz clara (mente de luz clara), que é o nível mais sutil da continuidade mental de todos. Todas as continuidades mentais têm níveis de luz clara de experienciar as coisas que, como natureza búdica última, lhes fornecem a continuidade interminável mais profunda. Níveis mais óbvios de se experienciar as coisas, tais como aqueles aonde a percepção sensorial e o pensamento conceptual ocorrem, não continuam, na verdade, de uma vida para a vida seguinte. Além disso, eles acabam para sempre com a realização da iluminação. Só as sucessões ao nível da luz clara é que continuam ininterruptamente, mesmo depois de nos termos transformado em Buda. Se os seres individuais fossem análogos aos rádios, então os níveis mais óbvios das suas continuidades mentais seriam semelhantes à emissão de diferentes estações dos rádios, enquanto que os seus níveis de luz clara se assemelhariam como se os rádios estarem simplesmente ligados. Contudo, a analogia não é exata. Os rádios podem deixar de tocar, enquanto que as continuidades mentais nunca cessam o seu fluir.
Não obstante o nível em que ocorre, o mero experienciar das coisas, individual e subjetivo, envolve o surgimento das aparências das coisas (claridade) e o ocuparmo-nos com elas mentalmente (consciência). Ou seja, não perceptionamos diretamente os objetos externos, mas meramente aparências ou as suas representações mentais que surgem como parte do ato de percepcionar. As aparências, aqui, incluem não só as visões das coisas mas também os seus sons, cheiros, gosto e sensações físicas, assim como os pensamentos sobre elas. A ciência ocidental descreve o mesmo ponto a partir de uma perspectiva física. Ao percepcionarmos coisas, na verdade não cognizamos objetos externos, mas apenas complexos de impulsos eletroquímicos que representam os objetos no sistema nervoso e no cérebro. Embora todos os níveis de experienciação das coisas envolvam o surgimento de aparências delas, a continuidade de luz clara é a verdadeira fonte que produz todas as aparências.
Ocuparmo-nos mentalmente com aparências significa ver, ouvir, cheirar, provar, sentir fisicamente, pensar nelas ou sentir algo sobre elas emocionalmente. A ocupação mental pode ser subliminar ou até inconsciente. E mais, produzir as aparências das coisas e ocupar-se mentalmente com elas são duas maneiras de descrever o mesmo fenómeno. O surgimento de um pensamento e o pensar um pensamento são de fato o mesmo evento mental. O pensamento não surge e depois pensamos nele: as duas ações mentais ocorrem simultaneamente porque elas descrevem o mesmo evento.
A discussão Sakya do tantra concentra-se num fator específico da natureza búdica, ou seja, na sucessão interminável dos momentos da atividade inata da continuidade de luz clara de fazer surgir aparências [a partir] de si própria. O fazer surgir das aparências é automático, não intencional e inconsciente. Podemos deliberadamente olhar para algo; mas quando nós vemos, a nossa continuidade de luz clara não constrói deliberadamente uma aparência desse algo. Além disso, as aparências que surgem da continuidade de luz clara podem ser da base física da continuidade – nosso corpo – ou de quaisquer outros objetos que ela percepciona.
Aqui, a questão principal é que o surgimento de aparências ocorre inseparavelmente a dois níveis: impróprio e sutil. Inseparavelmente (yermey, dbyer-med) significa que se um nível ocorre validamente, o outro nível também ocorre validamente. Neste contexto, as aparências impróprias são as dos seres comuns e seus ambientes; as aparências sutis são as das figuras búdicas e suas envolvências.
Os seres comuns e as figuras búdicas são como níveis quânticos das continuidades de luz clara. As partículas subatómicas têm vários níveis de energia quântica nas quais vibram igualmente de um modo válido. O nível em que uma partícula está a vibrar é uma função da probabilidade em qualquer momento: não se pode dizer ao certo que a partícula está a vibrar apenas num nível e não no outro. De fato, de acordo com a mecânica quântica, uma partícula pode vibrar simultaneamente a vários níveis. Similarmente, não se pode dizer que num momento específico um ser individual tenha apenas uma aparência e não outra, porque o nível em que uma continuidade de luz clara aparece a qualquer momento é uma função da probabilidade.
A continuidade interminável da atividade mental que produz este par de aparências inatamente ligadas pode ser não refinada, parcialmente refinada ou totalmente refinada, dependendo das sucessões de momentos de confusão e dos seus hábitos que a acompanham. A matéria principal do tantra, como discutida na escola Sakya, é o processo em que a continuação da prática com figuras búdicas purifica este fator da natureza búdica, de modo a produzir uma sucessão interminável de aparências completamente livres de períodos acompanhantes de confusão e dos seus hábitos.
A Explicação Gelug
Ao explicitar o significado do tantra como uma continuidade eterna, a tradição Gelug segue o Um Apendice do Tantra de Guhyasamaja. O aspecto principal da natureza búdica aqui enfatizado é a vacuidade da continuidade mental – a sua ausência de existir em modos impossíveis. As continuidades mentais não existem como inerentemente danificadas e impuras por natureza. Nunca existiram nem nunca irão existir. Não há continuidades eternas de características inatas que, as acompanhando e através dos seus próprios poderes, as fazem existir desse modo impossível. Porque esta ausência total é sempre o caso, quando os praticantes compreendem inteiramente este fato, podem fazer com que as continuidades de confusão e seus hábitos deixem de acompanhar as suas continuidades mentais de modo a que os seus fatores da natureza búdica possam funcionar inteiramente como facetas iluminadoras de um Buda. Uma vez que as continuidades mentais continuam para sempre como continuidades intermináveis, as suas vacuidades permanecem sempre um fato, permitindo a purificação e a transformação.
O método de purificação refere-se aos estágios da prática com figuras búdicas. Ao contrário de pessoas comuns, as figuras búdicas não crescem de fetos, não envelhecem e não morrem. Uma vez que elas estão sempre disponíveis em qualquer forma, a meditação com elas pode formar uma continuidade interminável. O resultado do processo de purificação é a continuidade interminável da Budeidade.
Resumindo, através de uma continuidade interminável de prática meditacional de união a figuras búdicas, os praticantes de tantra alcançam a continuidade interminável da Budeidade, baseada no fato interminável da vacuidade das suas continuidades mentais. O tantra é chamado veículo resultante porque a prática de tantra nos envolve no produzir de aparências de nós próprios como figuras búdicas que se assemelham ao estado resultante da iluminação.
Sumário
A matéria do tantra diz respeito às continuidades intermináveis conectadas com a continuidade mental. As continuidades incluem fatores da natureza búdica tais como boas qualidades básicas, um nível de luz clara de experienciar as coisas, a sua atividade de produzir auto-aparências e a sua vacuidade. As continuidades também incluem figuras búdicas e o estado iluminado. As quatro tradições do budismo tibetano explicam várias maneiras como as sucessões de momentos destas continuidades eternas se entrelaçam como bases, caminhos e resultados. Elas compartilham a característica de que o tantra envolve um caminho de prática com figuras búdicas para purificar uma base, a fim de atingir a iluminação como resultado. Elas também concordam que as características físicas das figuras búdicas servem como representações multivalentes e fornecem os urdumes para entrelaçar os vários temas da prática do sutra. O termo tantra refere-se a esta matéria intricadamente entrelaçada e aos textos que a discutem.

Compreendendo o Tantra 2



2 A Autenticidade dos Tantras






A Origem dos Tantras

A prática tântrica requer a convicção da autenticidade dos tantras, a compreensão correta dos seus métodos e teoria e a certeza da sua validade como processos conducentes à iluminação. De acordo com a tradição tibetana, a fonte dos tantras é o próprio Buda Shakyamuni. Contudo, muitos eruditos ocidentais e budistas disputaram essa questão. No entanto, segundo padrões científicos ocidentais, nenhum dos textos atribuídos ao Buda – nem sutras nem tantras – pode passar o teste de autenticidade. A questão é se isto é crucial aos praticantes do tantra ou outros critérios são para eles mais relevantes.

Os tibetanos explicam que o Buda Shakyamuni ensinou três veículos ou caminhos de prática que conduzem aos objetivos espirituais mais elevados. O veículo modesto (pequeno veículo), Hinayana, conduz à liberação, enquanto que o grande veículo, Mahayana, conduz à iluminação. Embora Hinayana seja um termo pejorativo que aparece apenas em textos Mahayana, nós iremos aqui usá-lo sem quaisquer conotações negativas como termo geral amplamente reconhecido para as dezoito escolas budistas pré-Mahayana. Tantrayana, o veículo do tantra – também chamado Vajrayana, o veículo forte-como-um-diamante (veículo do diamante) – é uma subdivisão do Mahayana. O Hinayana transmite apenas os sutras, enquanto que o Mahayana transmite tanto os sutras como os tantras.

Ninguém registou os discursos ou diálogos instrutivos do Buda quando ele os deu há dois mil e quinhentos anos, dado que o costume indiano desse tempo limitava o uso da escrita às transações comerciais e militares. No entanto, no ano seguinte ao falecimento do Buda, quinhentos dos seus seguidores reuniram-se em conselho no qual três dos seus principais discípulos recitaram partes diferentes das suas palavras. Subsequentemente, diferentes grupos de monges tomaram a responsabilidade de memorizar e de periodicamente recitar seções específicas delas. A responsabilidade passou de uma geração de discípulos para a seguinte. Essas palavras tornaram-se os sutras Hinayana. A reinvindicação à sua autenticidade fica exclusivamente na crença de que os três discípulos originais tinham uma perfeita recordação e de que todos aqueles que no conselho confirmaram as suas narrativas se lembravam das mesmas palavras. Estas duas condições são impossíveis de se estabelecer cientificamente.

Mesmo se a transmissão original estivesse livre de corrupção, muitos discípulos proeminentes em gerações subsequentes não tinham memórias perfeitas. Cem anos depois do falecimento do Buda surgiram conflitos de opiniões sobre muitos dos sutras Hinayana. Em consequência disso emergiram dezoito escolas, cada uma com a sua própria versão daquilo que o Buda disse. As escolas até discordaram sobre o número de discursos e diálogos do Buda que foram recitados no primeiro conselho. De acordo com algumas versões, vários discípulos do Buda não tiveram possibilidade de estar presentes e transmitiram por via oral exclusivamente aos seus próprios estudantes os ensinamentos de que se lembravam. Os exemplos mais proeminentes dizem respeito aos textos relativos aos tópicos especiais de conhecimento (sânsc. abhidharma). Durante muitos anos, as gerações subsequentes recitaram-nos fora das reuniões oficialmente sancionadas e apenas mais tarde alguns conselhos adicionaram-nas à coleção Hinayana.

As primeiras escrituras apareceram por escrito quatro séculos depois de Buda, em meados do primeiro século A.C. Eles eram os sutras Hinayana da escola Theravada, a linha dos idosos. Gradualmente, os sutras das outras dezassete escolas Hinayana também emergiram em forma escrita. Embora a versão Theravada fosse a primeira a aparecer em escrito e embora Theravada seja a única escola Hinayana que hoje sobrevive intacta, estes dois fatos são inconclusivos quanto à prova de que os sutras Theravada são as autênticas palavras do Buda.
Os sutras Theravada estão em língua Pali, enquanto que as outras dezassete versões estão em várias línguas indianas, tais como sânscrito e o dialeto local de Magadha, a região onde o Buda viveu. Contudo, não se pode estabelecer que Shakyamuni ensinou em apenas uma ou em todos estes idiomas indianos. Assim, nenhuma versão dos sutras Hinayana pode pretender a autênticidade com base na língua.
Além disso, o Buda aconselhou os seus discípulos a transmitirem os seus ensinamentos em quaisquer formas compreensíveis. Ele não queria que os seus seguidores congelassem as suas palavras numa língua sagrada arcaica como aquela das escrituras indianas antigas, os Vedas. Consistente com esta recomendação, diferentes partes de ensinamentos Hinayana do Buda apareceram primeiro por escrito em várias línguas indianas e em estilos de composição e de gramática dissimilares para se adequarem à época. Os sutras e os tantras Mahayana também exibem uma grande diversidade de estilo e línguagem. De um ponto de vista budista tradicional, a diversidade da línguagem prova mais a autênticidade do que a refuta.
De acordo com a tradição tibetana, antes dos ensinamentos do Buda terem sido postos em escrita, os discípulos recitavam os sutras Hinayana abertamente em grandes congregações monásticas; os sutras Mahayana em grupos pequenos e privados e os tantras em extremo segredo. Os sutras Mahayana apareceram primeiro nos inícios do século II D.C., e os tantras começaram talvez a emergir tão cedo quanto um século depois, embora seja impossível qualquer datação precisa. Como notámos acima, de acordo com várias tradições Hinayana, círculos privados até transmitiram oralmente alguns dos mais famosos textos Hinayana antes das principais assembleias monásticas as terem integrado no conjunto do que recitavam abertamente. Portanto, a ausência de um texto na agenda do primeiro conselho não refuta a sua autênticidade.
Além disso, os participantes das sessões de recitação do tantra juraram votos de silêncio para não revelar os tantras aos não iniciados. Portanto, não é de surpreender que os relatos pessoais das reuniões do tantra não tenham aparecido. Assim, é difícil provar ou refutar a transmissão pré-escrita dos tantras e a ocorrência das reuniões secretas. E mais, mesmo se aceitarmos a transmissão oral pré-escrita dos tantras, é impossível estabelecer como e quando tal transmissão começou, como é o caso com as escrituras Hinayana ausentes no primeiro conselho.
Como argumentou o mestre indiano Shantideva, em Engajando no Comportamento do Bodhisattva (sânsc. Bodhicharyavatara), qualquer linha de raciocínio apresentada para provar ou desacreditar a autênticidade dos textos Mahayana aplica-se igualmente às escrituras Hinayana. Consequentemente, a autênticidade dos tantras deve apoiar-se em outros critérios que não os fatores linguísticos e a data da escrita inicial.
Diferentes Pontos de Vista de Buda Shakyamuni como Professor
Uma fonte principal de confusão ao tentarmos verificar a origem dos tantras deve-se ao fato de budologistas ocidentais, eruditos Hinayana e autoridades Mahayana considerarem diferentemente o Buda Shakyamuni. Os budologistas aceitam Shakyamuni como uma figura histórica e um grande professor, mas não o consideram como tendo possuído poderes superhumanos, como tendo até instruído não-humanos, e como tendo continuado a ensinar após a sua morte. Embora os eruditos Hinayana concedam que o Buda Shakyamuni teve poderes extraordinários e podia ensinar todos os seres, eles colocam pouca ênfase nestas qualidades. Além disso, eles dizem que a morte de Shakyamuni marcou o fim das suas atividades de ensino.
Os eruditos dos sutras e dos tantras Mahayana explicam que Shakyamuni tinha-se transformado em Buda há muitos éons atrás e meramente exibiu os estágios para se tornar iluminado durante a sua vida como príncipe Siddhartha. Ele continuou a aparecer em várias manifestações e a ensinar a partir dessa altura, usando uma grande variedade de habilidades paranormais. Eles citam o Sutra Lótus, no qual Shakyamuni proclamou que iria manifestar-se no futuro como vários mestres espirituais, cujos ensinamentos e comentários seriam tão autênticos como foram as suas próprias palavras. Além disso, os eruditos Mahayana aceitam que os budas podem-se manifestar simultaneamente em várias formas e lugares, com cada emanação ensinando um tópico diferente. Por exemplo, quando apareceu como Shakyamuni propondo Os Sutras Prajnaparamita (perfeição da sabedoria), em Vultures Peak no norte da India, o Buda também se manifestou no sul da India como Kalachakra expondo as quatro classes dos tantras em Dhanyakataka Stupa.
A visão Mahayana de como os budas ensinam estende-se para além de pessoalmente instruir discípulos. Shakyamuni, por exemplo, inspirou também outros budas e bodhisattvas (aqueles inteiramente dedicados a atingir a iluminação e a ajudar os outros) a ensinar em seu lugar, como quando Avalokiteshvara expôs O Sutra coração na presença do Buda. Ele também permitiu outros a ensinar a sua mensagem pretendida, tal como Vimalakirti em O Sutra Instruindo sobre Vimalakirti.
E mais, em épocas mais tardias, Shakyamuni e outros budas e bodhisattvas, que tinham permissão para ensinar em seu lugar, apareceram em visões puras a discípulos altamente avançados e revelaram ensinamentos adicionais do sutra e do tantra. Por exemplo, Manjushri revelou A separação dos quatro tipos de agarramento a Sachen Kunga-nyingpo, fundador da tradição Sakya tibetana, e Vajradhara apareceu repetidamente a mestres na India e no Tibete e revelou ainda outros tantras. Além disso, os budas e os bodhisattvas transportaram discípulos a outros reinos a fim de os instruir. Por exemplo, Maitreya levou o mestre indiano Asanga à sua terra pura e lá transmitiu-lhe os C inco textos.
Porque as audiências para os ensinamentos do Buda consistiam de uma variedade de seres, e não só de seres humanos, alguns deles protegeram material para épocas futuras mais conducentes. Por exemplo, os nagas, metade-humanos e metade-serpentes, preservaram Os Sutras Prajnaparamita no seu reino subterrâneo, sob um lago, até que Nagarjuna, um mestre indiano, os foi adquirir novamente. Jnana Dakini, uma adepta feminina supranormal, guardou O Tantra de Vajrabhairava em Oddiyana até que o mestre indiano Lalitavajra para lá viajou a conselho de uma visão pura de Manjushri. Além disso, mestres indianos e tibetanos esconderam escrituras para as salvaguardar em lugares físicos ou implantando-as como potencialidades nas mentes de discípulos especiais. Gerações mais tardias de mestres descobriram-nas como textos-tesouro (terma, gter-ma). Asanga, por exemplo, enterrou A Interminável Continuidade Última (O Eterno Contínuo Último) de Maitreya e o mestre indiano Maitripa desenterrou-o muitos séculos mais tarde. Padmasambhava escondeu inumeráveis textos de tantra no Tibete, que os mestres Nyingma subsequentes descobriram nos recessos dos templos ou nas suas próprias mentes.
Quando a tradição tibetana se refere a Shakyamuni como a fonte dos tantras, está-se a referir ao Buda descrito em comum pelas tradições Mahayana de sutra e tantra. Se os potenciais praticantes de tantra abordarem a questão da autenticidade com a atitude de aceitarem meramente as descrições dos budologistas ou eruditos Hinayana, então naturalmente um tal Buda não poderia ter ensinado os tantras. Contudo, isto é irrelevante a tais pessoas. Os praticantes de tantra não têm o objetivo de se transformarem no tipo de budas que os budologistas e os eruditos Hinayana descrevem. Através da prática tântrica, o seu objetivo é transformarem-se em Budas como descritos nos ensinamentos Mahayana de sutra e tantra. Uma vez que eles aceitam Shakyamuni como tendo sido um tal Buda, aceitam certamente que ele tenha ensinado os tantras de todas as maneiras milagrosas que a tradição relata.
A Relação entre o Tantra Budista e o Tantra Hindu
A literatura tântrica começou a aparecer em ambas as tradições budista e hindu aproximadamente no século III D.C. na India. No entanto, são inacessíveis datas precisas e as duas tradições indubitavelmente pré-datam o aparecimento dos seus textos. Não obstante os contextos filosóficos e éticos difiram, as práticas devocionais, os exercícios de yoga e numerosos aspectos de costumes matriarcais, tribais e marginais mais antigos são proeminentes em cada uma delas. Por exemplo, ambos os sistemas incluem a visualização de figuras com múltiplas faces e braços, manipulação de energias sutis através dos nódulos energéticos (sânsc. chakras), veneração das mulheres, uso de ornamentos de osso e de instrumentos musicais, imagens de locais de cremação e matadouros, e transformação de produtos corporais sujos. Assim, é difícil provar que um tenha sido a fonte de uma característica específica do outro. Podemos apenas dizer que os dois foram movimentos contemporâneos. Além disso, dado que os praticantes de tantra budistas e hindus frequentavam assiduamente os mesmos lugares sagrados, é provável que cada grupo tenha influenciado o outro.
Budologistas e eruditos tradicionais Tantrayana concordam que a história do budismo relata a adaptação de importantes temas budistas a vários meios culturais, mas diferem nas suas explicitações acerca do processo. Os budologistas não aceitam que o Buda tenha ensinado os tantras. Eles assumem que mestres mais tardios desenvolveram uma forma tântrica de budismo e compuseram os seus textos por forma a irem ao encontro do espírito da época na India. Por um lado, os eruditos tradicionais Tantrayana afirmam que os poderes supramundanos do Buda permitiram-lhe prever desenvolvimentos culturais e que ele pessoalmente ensinou o tantra para servir as pessoas do futuro. Assim, quando chegasse a hora certa, aqueles que secretamente transmitiam os tantras - oralmente ou enterrados nas suas continuidades mentais – tornaram-nos disponíveis aos praticantes receptivos. Alternativamente, o Buda revelou os tantras em visões puras a mestres altamente realizados que os registaram pela primeira vez. A explicação de cada grupo de eruditos concorda com o seu modo particular de ver o Buda e com o princípio budista geral de ensinar através de meios hábeis.
A Continuidade da Luz Clara como a Fonte Mais Profunda dos Tantras
Em U ma lâmpada iluminante, o mestre indiano Chandrakirti explicou que as asserções dos textos tântricos mais elevados têm diversos níveis de significado, e que alguns deles podem ser válidos apenas para grupos específicos. Por exemplo, alguns níveis são válidos exclusivamente para praticantes do tantra mais elevado e alguns são aceitáveis também aos seguidores de ensinamentos budistas supostamente inferiores. Além disso, as asserções com significados compartilhados podem ter níveis de interpretação literais e não-literais, apenas literais ou apenas não-literais. Têm significados literais se concordarem com a experiência dos grupos que as aceitam; têm significados não-literais se elas se referirem a níveis mais profundos de significado.
Deixem-nos aplicar a análise de Chandrakirti à asserção que o Buda Shakyamuni ensinou os tantras através de meios extraordinários, tais como a revelação. Alguns budologistas podem aceitar a asserção como tendo um nível não-literal mais profundo de significado, mas rejeitariam uma interpretação literal, uma vez que a revelação está fora do reino da sua experiência pessoal. No entanto, a asserção concorda com a experiência de numerosos mestres dos sutras Mahayana, uma vez que tanto eles como muitos mestres tântricos receberam ensinamentos budistas através de revelações. Assim, os seguidores dos sutras Mahayana e dos tantras aceitam que a asserção tenha um significado literal.
Chandrakirti detalhou adicionalmente que os significados não-literais das asserções do tantra mais elevado apontam para um nível último de significado a respeito da continuidade de luz clara. Numerosos textos tântricos afirmam que o Buda ensinou os seus conteúdos sob a forma de Samantabhadra, de Vajradhara ou do AdiBuda (Buda primordial) Kalachakra – três figuras búdicas que representam a continuidade de luz clara. Assim, o significado ultimo não-literal das asserções é que a fonte mais profunda dos ensinamentos do tantra é a continuidade de luz clara iluminadora de um Buda.
De acordo com a explicação do tantra mais elevado sobre a natureza búdica, especialmente a da tradição Nyingma, a parte refinada da continuidade de luz clara de cada pessoa possui inatamente todas as qualidades iluminadoras. Consequentemente, assim como a confusão que acompanha a parte não refinada em cada indivíduo pode causar os ensinamentos enganosos de um charlatão, a parte refinada pode tornar-se fonte de ensinamentos búdicos adicionais. Assim, mesmo quando a continuidade de luz clara de alguém está ligeiramente menos refinada que totalmente refinada, e ainda flui como um tantra do caminho, se as condições adequadas internas e externas estiverem presentes, a sua parte refinada pode espontâneamente produzir novos ensinamentos tântricos. Antes de chegar a hora certa e de ocorrer um surgirmento espontâneo, os ensinamentos são transmitidos numa forma escondida, de uma vida à vida seguinte, como partes das potencialidades não realizadas da continuidade de luz clara da pessoa. Se a pessoa a quem ocorre o surgimento espontâneo aceitar a compartilhada estrutura conceptual Mahayana da revelação, é provável que ela descreva e experiencie subjetivamente o fenômeno em termos dessa estrutura. A descrição e a experiência serão válidas para essa pessoa.
Consideremos, por um lado, o caso de budologistas que aceitam as proposições da psicologia transpessoal, por exemplo, a afirmação de que as chaves para se atingir a auto-realização estão encaixadas nas potencialidades do inconsciente de cada pessoa. Os bloqueios mentais, simbolizados nos mitos por criaturas subterrâneas tipo-dragões, tais como os nagas, guardam-nas e mantêm-nas submersas. Os métodos para a auto- realização permanecem escondidos no inconsciente até um indivíduo alcançar um nível suficiente de desenvolvimento espiritual e chegar a hora certa para a sua revelação. Uma vez que tais budologistas consideram o inconsciente como um equivalente para a continuidade de luz clara, eles podem aceitar um nível partilhado de significado com os praticantes de tantra a respeito da asserção de que o Buda ensinou os tantras, embora eles rejeitem completamente o seu significado literal. Eles poderiam aceitar o Buda como fonte dos ensinamentos de tantra apenas no sentido em que o Buda representa o inconsciente. Ou seja, os ensinamentos do tantra vêm do inconsciente dos vários mestres em cujas mentes eles surgiram espontâneamente.
Os Critérios para se Estabelecer a Autenticidade dos Tantras
A sua linhagem ininterrupta de regresso ao Buda é o critério principal para se estabelecer um ensinamento como autenticamente budista – quer se descreva o Buda conforme a budologia clássica, a psicologia transpessoal, o Hinayana, o Mahayana em geral ou conforme as perspectivas Tantrayana mais elevadas. Contudo, qualquer pessoa poderia dizer que recebeu uma transmissão tântrica do Buda numa visão pura ou que encontrou um texto-tesouro enterrado no chão ou na sua mente. Consequentemente, precisamos de outros critérios para estabelecermos a autenticidade dos tantras em geral e de qualquer um dos seus textos.
Na escritura Hinayana, o Sutra Mahaparinirvana (Grande passagem para além), Shakyamuni discutiu o caso em que alguém possa alegar possuir um ensinamento autêntico fora daquilo que ele próprio tinha indicado. O Buda recomendou que os seus seguidores poderiam aceitá-lo como autêntico se, e só se, concordasse com o conteúdo do restante dos seus ensinamentos.
Considerando acerca disto em Um Comentário sobre [“Um Comp ê ndio de] Mentes de Cogni ção Válida” [de Dignaga], o mestre indiano Dharmakirti propôs dois critérios decisivos para a autenticidade de um texto budista. O Buda ensinou uma variedade enorme de tópicos, mas apenas aqueles temas que repetidamente aparecem do princípio ao fim dos seus ensinamentos indicam o que o Buda realmente pretendia. Estes temas incluem: tomar uma direção segura (refúgio); compreender as leis da causa e efeito comportamentais; desenvolver a mais elevada disciplina ética; a concentração e consciência discriminadora de como as coisas realmente existem; e gerar o amor e a compaixão por todos. Um texto é um ensinamento budista autêntico se concordar com estes temas principais. O segundo critério para a autenticidade estabelece que a correta implementação das suas instruções por praticantes qualificados tem de trazer os mesmos resultados que o Buda repetidamente indicou algures. A prática correta tem de conduzir à obtenção dos objetivos últimos da liberação ou da iluminação e dos objetivos provisionais da realização espiritual ao longo do caminho.
A presença de um entrelaçar dos temas principais do Buda, a experiência e as realizações dos mestres passados e presentes afirmam a autenticidade dos tantras através destes dois critérios. Estes critérios estabelecem também a validade dos tantras, porque a sua prática correta produz os resultados indicados. Além disso, nós próprios podemos provar a sua autenticidade e validade diretamente, através do correto seguimento das instruções do tantra.
Os Quatro Pontos Seladores (Autenticadores) para Marcar uma Perspectiva como Baseada nas Palavras Iluminadoras
Como uma explicação detalhada do primeiro critério de autenticidade de Dharmakirti, referiu-se Maitreya em A Interminável Continuidade Última (O Eterno Contínuo Último), a quatro pontos seladores (autenticadores) para marcar uma perspectiva como sendo baseada nas palavras iluminadoras de um Buda. Se um corpo de ensinamentos contiver os quatro, carrega o selo de autenticidade como um ensinamento budista porque o seu ponto de vista filosófico é concordante com a intenção das palavras do Buda: (1) Todos os fenômenos afetados (condicionados) são não-estáticos (impermanentes). (2) Todos os fenômenos infectados (contaminados) pela confusão envolvem problemas (sofrimento). (3) Todos os fenômenos são carentes de identidades não-imputadas. (4) Uma eliminação total de todos os problemas (sânsc. nirvana) é uma pacificação total.
A perspectiva tântrica budista conforma-se com os quatro pontos seladores (autenticadores): (1) Todas as coisas afetadas por causas e condições mudam de momento a momento. Mesmo com a realização da iluminação através dos métodos do tantra, a compaixão continua a conduzir um Buda a benefíciar os outros em modos sempre-mutáveis. (2) Como um método para se alcançar a iluminação, a classe mais elevada do tantra aproveita a energia das emoções perturbadoras tais como o desejo ansioso. No entanto, este método liberta completamente o praticante de emoções perturbadoras e da confusão por trás delas. Precisamos de nos libertar delas para sempre, nós próprios, porque todos os fenômenos infectados trazem problemas. (3) Depois de termos explorado o poder da energia subjacente às emoções perturbadoras, tais como o desejo ansioso, usamo-lo para obter uma continuidade de luz clara. Este é o nível da mente mais conducente à realização não-conceptual de que todos os fenômenos carecem de identidades não-imputadas. (4) Desta realização da vacuidade ou ausência total, pacificamos e, assim, libertamo-nos a nós próprios de sucessões de momentos adicionais de vários níveis de confusão, dos seus hábitos e dos problemas que trazem. A realização desta pacificação total é a liberação total de todos os problemas. Assim, a perspectiva tântrica qualifica-se como autenticamente budista.
Desenvolvendo uma Firme Convicção na Autenticidade dos Tantras
Para darmos inteiramente o nosso coração à prática do tantra como um método para atingirmos a liberação e a iluminação, precisamos de nos concentrar no tantra com a firme convicção (mopa, mos-pa) de que é um ensinamento budista autêntico. A capacidade de nos concentrarmos desse modo cresce do acreditar que um fato é verdadeiro (daypa, dad-pa). O mestre indiano Vasubandhu, em Uma casa do tesouro de tópicos especiais do conhecimento, e o seu irmão Asanga, em Uma antologia de tópicos especiais de conhecimento, clarificaram o significado destes dois fatores ou ações mentais, que ocorrem ao concentrarmo-nos num fato. Nenhuma das ações mentais refere-se à focalização com fé cega em algo que pode ser ou não ser verdadeiro e que não compreendemos.
Acreditar que um fato sobre algo é verdadeiro inclui três aspectos.
(1) Acreditar num fato com clareza é a ação mental que está livre de dúvidas acerca de um fato e que limpa a mente de emoções e atitudes perturbantes em relação ao seu objeto. Por exemplo, quando se acredita com clareza que o tantra é um ensinamento budista, estamos cientes de que o tantra usa as emoções perturbadoras, tais como o desejo ansioso, como um método para livrarmo-nos para sempre a nós próprios de emoções perturbadoras. Acreditar neste fato liberta a mente do desejo ansioso de experienciar prazer através do tantra como um fim em si mesmo. Assim, acreditar com clareza num fato sobre algo decorre do correto entendimento da informação acerca disso.
(2) Acreditar num fato com base na razão é a ação mental de se considerar um fato sobre algo como verdadeiro, com base no pensar sobre as razões que o provam. Por exemplo, podemos estar certos de que um ensinamento deriva de uma dada fonte apenas quando identificamos corretamente essa fonte. De acordo com os tantras, apenas o Buda, como descrito nos tantras, deu esses ensinamentos. Os textos não afirmam que o Buda, como entendido pelos eruditos Hinayana ou budologistas ocidentais, os ensinou. Além disso, os tantras contêm os temas principais que o Buda repetidamente ensinou algures, especialmente os quatro pontos seladores (autenticadores), que atestam que a sua perspectiva filosófica está baseada nas palavras do Buda. Compreendendo estas razões, podemos acreditar com confiança que os tantras são autenticamente budistas.
(3) Acreditar num fato com aspiração a ele é a ação mental de considerar verdadeiro tanto um fato sobre algo como a aspiração que consequentemente temos em relação ao objeto. Com base nos dois aspectos anteriores de acreditar como verdadeiro o fato de que o tantra é um ensinamento budista autêntico, pode-se também acreditar como verdadeiro o fato de que posso atingir a iluminação através dos seus métodos e que, portanto, esforçar-me-ei a praticá-los corretamente.
Quando acreditamos firmemente dessas três maneiras que o tantra é autenticamente budista, desenvolvemos a firme convicção desse fato. Estar-se firmemente convencido de um fato é a ação mental que foca sobre um fato que validamente verificámos ser isto e não aquilo. Isso torna a nossa crença tão firme que os argumentos e as opiniões alheias não nos irão dissuadir. A firme convicção cresce da familiaridade a longo prazo com as consequências que resultam do acreditar num fato, isto é, de vermos os benefícios que colhemos da prática correta do tantra. Contudo, mesmo antes de começarmos a prática do tantra, necessitamos de uma convicção firme da sua validade. Assim, a ceremónia da preparação aos empoderamentos tântricos (iniciações) inclui nas suas primeiras etapas uma explanação do tantra pelo mestre que os confere a fim de reafirmar a convicção tenaz dos potenciais discípulos.