quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Pontos para Termos em Mente Antes de nos Envolvermos com o Tantra.

 


Resumindo, nós, melhor do que ninguém, podemos julgar se nosso desejo em ajudar os outros é sincero ou se nossas palavras são ocas. Se praticarmos o tantra antes de estarmos prontos, há uma enorme quantidade de perigos. Na verdade, podemos ficar psicologicamente arruinados se estivermos meramente praticando um ritual vazio, por algum motivo neurótico. A prática incorreta pode facilmente funcionar como base para uma enorme autovalorização, podemos desenvolver estranhas fantasias, arrogância e assim por diante; além disso, pode nos trazer desilusão por não estarmos alcançando coisa alguma com a prática ritual. Quando estamos fazendo uma determinada prática ritual diária apenas para manter o compromisso, e ficamos desiludidos por não sabermos pô-la em prática na nossa vida, então a nossa prática diária torna-se um fardo porque a vemos como uma obrigação, um dever: “Eu tenho de fazê-la”. Rapidamente começamos a criar aversão, ela se torna desagradável. Mas se estivermos preparados e tivermos a atitude correta, a prática tântrica torna-se extremamente benéfica. Mas isso realmente requer que juntemos todos os pontos do dharma.

Precisamos também de ter em mente que, quando estivermos envolvidos com a prática tântrica, a nossa prática irá se desenvolver. Precisamos evitar colocar uma linha sólida à sua volta pensando que a nossa prática será a mesma coisa enfadonha dia após dia: “eu estou recitando este ritual e poderia recitá-lo de trás para a frente”. A prática desenvolve-se com o tempo. É um processo, mais do que uma tarefa enfadonha de recitar a mesma coisa para o resto da eternidade. Embora a ética, a renúncia, bodhichitta, concentração e a compreensão da vacuidade sejam coisas que queremos ter para sempre, o nível da nossa aquisição irá desenvolver-se à medida que usamos a prática ritual para unir esses aspectos.

Mas tenham sempre presente que, assim como uma característica do samsara é ter sempre altos e baixos, a nossa prática tântrica também terá altos e baixos. Ela nunca se desenvolve de uma forma linear, melhorando diariamente. Precisamos de paciência e de perseverança.

Que perguntas têm vocês?

Iniciações

No Ocidente, acontece muitas vezes que você recebe iniciações e depois tem de fazer rituais sem ter estes entendimentos; e o fato de você precisar ter estes entendimentos não lhe é explicado antes de receber a iniciação.

Sim, infelizmente isso acontece com muita frequência. Repare, um dos problemas é que todas essas iniciações estão sendo dadas, e nós, como ocidentais, as recebemos pensando: “agora eu devo fazer isto e não devo fazer aquilo”. Um tibetano não as aborda dessa maneira. Quando essas iniciações lhes são dadas, a atitude da maioria dos tibetanos comuns é: “estou assistindo para plantar sementes ou instintos no meu continuum mental para as vidas futuras”. A maioria não tem nenhuma intenção de praticar tantra durante esta vida.

Mas eu estou falando do tibetano leigo comum. Eles levam às iniciações os seus bebês e até os seus cães. Acreditam que qualquer um, incluindo o bebê e o cão, tem, ao assistir à uma cerimônia de iniciação, sementes implantadas no seu continuum mental para vidas futuras. É assim que eles veem as iniciações. Mas nós, como ocidentais, não pensamos dessa maneira. Vamos às iniciações e mesmo se não tivermos nenhuma ideia do que se passou durante a cerimônia, depois dizemos: “Ó meu Deus! Eu assumo esse compromisso e agora tenho que fazer isso e se não fizer vou parar no inferno Vajra!!”

Isso é um grande mal-entendido sobre a vacuidade e o surgimento dependente. As coisas não acontecem por si só. O recebimento de uma iniciação é dependente tanto do que está fazendo a pessoa que está dando a iniciação, como do que está fazendo a pessoa que a está recebendo. Por exemplo, para recebermos realmente uma iniciação, precisamos tomar os votos de forma muito consciente, com todo o entendimento do que estamos fazendo. Se não fizermos isso, então não somos diferentes de um cão que lá estava.

Uma pergunta interessante é: o cão fica ou não com instintos implantados por estar lá? Da literatura clássica, parece que o cão fica, porque o cão experiencia o estar lá. Assim, há uma espécie de impressão no seu continuum mental, mesmo que seja muito fraca. Nós também podemos estar presentes e ter uma certa impressão de lá estar. No Ocidente, nós chamamos a isso fazer uma iniciação como uma “benção”. Mas fazer dessa forma não significa que realmente recebemos a iniciação e que a partir de agora temos dela todos os compromissos e votos. A menos que tivéssemos muito conscientemente aceitado os compromissos e os votos; nós não os temos.

Não há nada de errado em receber uma iniciação como um tibetano comum a receberia - como uma espécie de evento que inspira e cria uma impressão que no futuro será algo que poderemos usar em benefício dos outros e de nós próprios. Precisamos de evitar sermos pretensiosos, pensando que agora somos praticantes tântricos muito avançados, quando apenas assistimos à iniciação a um nível superficial e não nos comprometemos conscientemente a nada. Temos de estar dispostos a aceitar que: “eu assisti no nível de cão e isso é aceitável”.

Não obstante, assistir a uma iniciação no nível de um cão pode ser muito útil e inspirador – não há problema algum nisso. É a nossa vaidade que faz com que não queiramos aceitar que só conseguimos derivar esse nível de benefício. Obviamente, podemos ficar confusos e pensar: “se eu andar por aí a coletar tantas iniciações quanto possível, eu serei uma pessoa muito avançada”. Isso também é um pouco bobo, não é? Mesmo se compulsivamente coletarmos iniciações porque as achamos úteis e inspiradoras, é importante não nos considerarmos grandes praticantes tântricos. A humildade é sempre essencial em todos os aspectos da prática do Dharma.

Resumo

Tudo o que o Buda ensinou foi para ajudar as pessoas a superarem as dificuldades que têm na vida. Tendo isso em mente, quando encontrarmos aspectos dos ensinamentos que, no momento, nos parecem inacessíveis ou irrelevantes ao que concebemos como nosso caminho espiritual, precisamos ter cuidado para não os descartar. Talvez o enfoque clássico desses aspectos seja muito avançado para o nosso nível atual, ou talvez nossas ideias a respeito dele estejam equivocadas.

Quando identificamos os problemas e confusões que fazemos a respeito de tais ensinamentos, podemos aplicar métodos práticos para abordá-los. Quando usamos métodos que estão fora da nossa realidade para tentar atingir objetivos que não compreendemos, nos perdemos em meio à confusão e desistimos. Mas com métodos práticos e realistas, adequados ao nosso nível, podemos atingir resultados também realistas. Para isso, precisamos estourar os balões de nossas fantasias sobre os ensinamentos budistas e trazê-los à nossa realidade.

Quando Estamos Prontos Para o Tantra?

 

O Tantra é uma Prática Avançada 

 

Hoje tive uma ultima Vivencia com uma interagente que passava comigo a 6 anos e de verdade ?. Nós também precisamos de trazer o tantra ao nosso cotidiano.

Ao aproximarem-se dos ensinamentos tântricos, as pessoas do Ocidente geralmente caem em um de dois extremos. Um extremo é o de terem medo e de não quererem ter nenhum envolvimento com o tantra. O outro extremo é o de quererem mergulhar imediatamente no tantra. Estes dois extremos têm os seus problemas.

O tantra é uma prática extremamente avançada. Não é algo de que se deva ter medo nem algo onde se deva ingressar prematuramente. Nas nossas práticas no nível do sutra, as práticas iniciais, o que fazemos é aprender a desenvolver muitas qualidades diferentes que nos ajudarão a melhorar o samsara, a alcançar a liberação ou a nos tornarmos um Buda a fim de podermos ajudar os outros tão inteiramente quanto possível. Atingir estes objetivos requer o desenvolvimento da concentração, do amor e da compaixão, uma compreensão correta e profunda da impermanência, da vacuidade, da renúncia, e assim por diante. Tudo isto é absolutamente necessário pois são as causas da obtenção dos nossos objetivos. Embora possamos descrever o tantra de muitas formas diferentes, um aspecto da prática tântrica é que [ela] é um método de unir e praticar tudo isto simultaneamente.

Não podemos obviamente praticar todas estas coisas simultaneamente se não as tivermos desenvolvido anteriormente uma a uma. Entrar diretamente na prática tântrica, sem termos previamente desenvolvido essas qualidades, irá simplesmente degenerar numa prática ritualística sem nenhum conteúdo ou profundidade. Para realmente obtermos um benefício profundo por meio de um ritual, temos de o ver como uma estrutura unificadora de todas as qualidades que nós estamos desenvolvendo.

Precisamos, por exemplo, dar uma direção segura e positiva de refúgio nas nossas vidas. O que estamos fazendo com a prática de um ritual tântrico? Apenas isto: estamos indo nesta direção segura, tentando nos desenvolver através do ritual. Não estamos fazendo o ritual como um divertimento ou como uma distração, como ir à Disneylândia, como a pegação que acontece em muitos encontros ou até mesmo o que se vendem como um curso e na verdade é uma quase orgia, ou ainda como um escape para as nossas vidas cotidianas. Pelo contrário, estamos usando a prática ritualística como uma forma de ajudar o nosso autodesenvolvimento, a fim de alcançarmos os vários objetivos budistas. Esses objetivos são as Três Jóias de Refúgio: o que o Buda ensinou, o que ele conseguiu realizar, e o que a Sangha altamente realizada conseguiu em parte.

A Necessidade da Renúncia

A renúncia é outra parte extremamente necessária de qualquer prática tântrica e, deste modo, necessitamos também de salientar aquilo a que ela se refere. A renúncia tem dois aspectos. Um é a forte determinação de nos livrarmos dos nossos problemas. Esse aspecto permite-nos usar a prática tântrica como um método para nos libertarmos dos nossos problemas através da obtenção da iluminação. Se não tivermos esse aspecto de renúncia, essa determinação de estarmos livres, seremos incapazes de aplicar as práticas a nós próprios como uma parte integral do nosso percurso espiritual. Lembro-me que em meu primeiro curso de Chakras na humavercidade aqui em Sp, eu questionei a professora sobre o que eu estava sentindo naquele momento e tudo o que tinha acontecido na semana para que eu nao fosse na aula no sabado, ela muito calme me disse que o meu ser interior estava ja sabendo das renuncias que ei iria fazer ( Alguns amigos, cigarro, baladas etc) e ele estava lotando contra, mesmo sem eu perceber.  E o que tem que ser é. Simples assim.

O outro aspecto da renúncia é a disposição de abrir mão não só do nosso sofrimento, como também das causas do sofrimento. Isso é muito importante. Se não estivermos dispostos a abdicar das causas do nosso sofrimento, não haverá outra forma de nos livrarmos do sofrimento, não importa o quanto pretendemos nos livrar dele. Infelizmente, a causa do nosso sofrimento não é apenas algo trivial, como ir ao cinema ou comer chocolate ou até fazer sexo. É algo que permeia toda a nossa vida. A um certo nível, são todos os traços negativos da nossa personalidade -- toda a nossa raiva, apego, arrogância, ciúme e assim por diante. Se formos um pouco mais fundo, veremos que inclui a nossa insegurança, a nossa ansiedade e preocupação. E se formos ainda mais fundo, é a nossa confusão -- são todos os conceitos errados que temos acerca de nós e acerca de tudo na vida.

Ainda mais profundo do que isso, aquilo de que precisamos realmente nos livrar é do nosso estado mental habitual, que faz com que as coisas pareçam de uma maneira que não está de acordo com a realidade. Com base nessas chamadas “aparências impuras”, o nosso não-apercebimento de que elas são enganadoras e falsas faz-nos então acreditar que elas são verdadeiras. Todos os nossos problemas vêm daí.

Não é a mente em si que é o problema; é este funcionamento ou esta atividade mental que provoca o surgimento das aparências enganadoras e a nossa crença errônea de que essas aparências são verdadeiras. Portanto, a causa dos nossos problemas também não são as próprias aparências que a mente produz. É um grande erro pensar que o problema está nas próprias aparências. Pensar dessa forma é uma falha que vem da má interpretação da palavra tibetana nangwa, que pode significar “aparências” ou “produtor de aparências”.

Quando falamos sobre a libertação de “aparências comuns” ou “aparências duais”, não estamos falando de um substantivo; não estamos falando das aparências “lá fora”. Estamos falando de um modo de estar ciente de algo; estamos falando de um verbo. Especificamente, estamos falando da função da mente que faz com que as coisas apareçam de uma maneira que não está de acordo com a realidade. É disso que estamos tentando nos livrar; é disso que estamos tentando conseguir um verdadeiro cessar. E, infelizmente, a vida é difícil – as nossas mentes fazem constantemente as coisas aparecerem [em termos] irracionais, sem começo.

Por exemplo, mesmo se tivermos algum entendimento sobre a impermanência e a inexistência de um “eu” sólido, quando nos levantamos de manhã e nos vemos no espelho, a nossa mente faz parecer que somos idênticos à pessoa que éramos na noite anterior. Parece que somos permanentes. Ou acabamos de machucar o pé e a nossa mente faz com que pareça que existe um “eu” separado do pé: “Eu machuquei o ‘meu' pé”. A mente conceitual, baseada na nossa linguagem, faz com que as coisas pareçam ser dessa maneira.

O que precisamos é de estar dispostos a abandonar todo esse processo mental que faz com que as coisas pareçam ser dessa maneira – e ao qual, infelizmente, estamos incrivelmente habituados - e toda a confusão, problemas, preocupações e assim por diante que derivam dele. Se não estivermos dispostos a abrir mão disso, como poderemos transformar, através do tantra, o nosso eu", a nossa autoimagem e todas essas coisas?

Se não estivermos dispostos a abandonar a nossa auto-imagem habitual, nossa autoimagem de um “eu” sólido com uma identidade sólida, e depois imaginarmo-nos como uma deidade, isso pode ser transformar no caminho para a esquizofrenia em vez do caminho para a liberação. Ainda teremos uma imagem louca, raivosa e apegada de nós próprios. E depois adicionaremos a ela esse exagero que é “eu sou uma deidade”. Então poderíamos cometer a loucura de dizer, por exemplo: “estou com raiva: este é o meu aspecto como deidade irada”. Ou fazemos sexo com qualquer pessoa que encontramos, porque: “eu sou uma deidade com uma consorte, e esta é uma avançada prática tântrica de fazer sexo com todos”. Tudo isto é um grande perigo que pode acontecer se nos metermos no tantra sem termos como base a determinação de sermos livres – a renúncia da nossa autoimagem habitual.

E para renunciar a essa autoimagem é absolutamente necessário ter uma compreensão correta da vacuidade; porque de outro modo, como poderíamos transformar o conceito que temos a nosso próprio respeito? Sem uma compreensão correta, podemos ficar completamente loucos, pensando de uma maneira muito estranha “tudo à minha volta é uma perfeita mandala e todos são budas”, e depois somos atropelados por um carro porque não prestamos atenção quando atravessamos a rua.

Além disso, é absolutamente necessário ter-se amor, compaixão e bodhichitta. Nós estamos fazendo todas estas práticas para ajudarmos os outros e devido ao nosso interesse pelos outros. A bodhichitta, como um método para lidarmos com o mundo e com os outros, leva-nos realmente a aplicar tudo isso. Sem bodhichitta, é muito fácil cairmos sozinhos numa Disneylândia budista, num estranho reino imaginário.

Quando estamos fazendo as práticas tântricas, imaginamos que temos todos aqueles braços e pés e que estamos rodeados por cinco luzes coloridas, etc. Cada uma dessas coisas é uma representação de vários entendimentos, de várias qualidades, como o amor, a compaixão, os cinco tipos de consciência profunda e assim por diante. Imaginar essas coisas de uma forma gráfica, tal como os braços e os pés múltiplos, nos ajuda a gerá-las todas simultaneamente. É nesse sentido que o tantra é uma prática muito avançada e requer uma forte preparação para sermos capazes de o praticar corretamente.

A Necessidade das Práticas Preliminares Preparatórias

Quando falamos sobre outros tipos de preparação, como prostrações e repetições [do mantra] de 100 sílabas de Vajrasattva, isso está agregado ao que acabamos de falar. Isso ajuda-nos a acumular o potencial positivo para o sucesso da nossa prática tântrica e nos purificar do potencial negativo que impediria nosso sucesso. Mas, fazer apenas as práticas preliminares, sem sem praticar junto o amor, a compaixão, a concentração, a compreensão da vacuidade etc., não é o suficiente para se obter sucesso. Poderíamos, por exemplo, fazer cem mil prostrações tendo como motivação uma razão neurótica; tal como agradar o nosso professor, juntarmo-nos ao clube de “pessoas especiais”, como castigo por sermos uma “má” pessoa ou coisas assim.

As práticas preliminares precisam ter como base todos esses vários aspectos do dharma, tais como o amor e a compaixão, e também precisam ter como objetivo a promoção do nosso desenvolvimento nesses aspectos. Isso é semelhante ao que já discutimos em termos de como progredir na nossa compreensão da vacuidade ou do que quer que seja, e como para isso é necessário acumular muito potencial positivo e eliminar alguns bloqueios mentais. Essas práticas, como as prostrações, ajudam-nos a criar energia positiva para conseguirmos unir todos os aspectos do dharma. Se nos faltar esses aspectos que necessitamos unir, a energia positiva das práticas preliminares não será suficiente.

A forma de se acumular o potencial positivo e de se eliminar os obstáculos pode ser estruturada em termos tradicionais, mas não tem de o ser. Poderia ser o cuidado com as nossas crianças ou o trabalho num hospital - qualquer coisa construtiva ou positiva que fazemos frequentemente. Eis um exemplo tradicional: Buda teve um discípulo muito difícil que não tinha grande capacidade intelectual. Como prática preliminar para essa pessoa, Buda mandou-o varrer o templo durante muitos anos com a recitação: “sujeira, vá-se embora; sujeira, vá-se embora”. Esta era a prática preliminar para essa pessoa. Buda não o mandou fazer prostrações. Assim, necessitamos ser um pouco mais flexíveis e compreender que o mais importante é o próprio processo de acumulação e de purificação. A estrutura desse processo pode ser feita especificamente para cada indivíduo.

O Professor Espiritual e a Tomada de Votos

Por outro lado, não há nenhuma necessidade de se ter medo do tantra e sentir que “eu não quero me envolver com isso de forma alguma”. Mas temos de ter cuidado e praticar corretamente. Para isso, a relação com o professor espiritual é muito importante porque, como estávamos mencionando, quando vemos o professor como uma dessas deidades, como uma dessas formas búdicas, isso também funciona de outra maneira: permite-nos ver essas figuras búdicas como humanas. Ou seja, aprendemos o que na verdade significa transpor para a vida humana toda a prática tântrica. Isto é muito importante. Se assim não for, podemos ficar com umas ideias muito estranhas acerca do que significa a visualização de nós próprios nessas formas durante todo o dia.

Outra coisa muito importante com relação ao tantra é a tomada de certos grupos de votos - os votos leigos, os votos de bodhisattva e, nas duas classes mais elevadas do tantra, os votos tântricos. Mas temos de ter cuidado a fim de evitarmos a tomada de votos sob o ponto de vista de que existimos como um “eu” sólido e que “eu devo fazer isto e não devo fazer aquilo”. A compreensão da vacuidade é muito importante para a nossa capacidade de tomada de votos de uma forma não neurótica, de forma a não carregarmos sentimentos de culpa sobre o que fizemos no passado ou o que possamos vir a fazer no futuro, ou sentimentos de que estamos perdendo o controle devido a termos tomado esses votos, ou “agora eu dei o controle a outra pessoa e me tornei num escravo do professor”. Se assim pensarmos, em termos da questão do controle, podemos ficar com tanto medo de tomar votos que acabamos por não nos envolver no tantra.

Para superarmos tudo isso e para sermos capazes de tomar e manter os votos de uma forma não neurótica, necessitamos, uma vez mais, da compreensão da vacuidade. Repito e torno a repetir, para praticarmos o tantra, precisamos de renúncia, bodhichitta e compreensão da vacuidade. Se estivermos corretamente preparados, o tantra é extremamente importante porque nos permite juntar tudo isso. É correto sermos muito cautelosos e cuidadosos e não mergulharmos no tantra antes de estarmos preparados, mas precisamos também evitar pensar que: “eu nunca estarei preparado e por isso não quero me meter nisso”. Na nossa abordagem, precisamos de uma espécie de caminho do meio.

Quando a Nossa Compreensão é Suficiente?

Como saber que “agora eu tenho uma compreensão suficiente da vacuidade, da bodhichitta e da renúncia para me envolver com o tantra?” Isso não é assim tão fácil. Antes de mais nada, nós nos conhecemos melhor do que qualquer outra pessoa. Dizer que “o guru sabe” e assim por diante, é realmente romantizar a situação. Torna-se num método para fugirmos à tomada de responsabilidade pelas nossas vidas, o que é muito imaturo. Obviamente, se tivermos uma relação próxima com um professor espiritual, discutir com ele pode ser útil. Precisamos evitar pensar, de uma forma arrogante, que “eu não tenho que consultar o meu professor”. Mas nem todos temos uma relação pessoal e próxima com um professor, e por isso não é assim tão fácil. Eu acho que temos de olhar para dentro de nós, sermos honestos conosco e não nos distrairmos com jogos de autoengano, do tipo “sou muito avançado”, etc.

Acho que a coisa principal a focalizar – e que só nós podemos julgar – é a intensidade da nossa compaixão, que irá determinar a intensidade da nossa bodhichitta. Ou seja, estou realmente preocupado com as outras pessoas e em ser capaz de ajudá-las? Se isso for bastante forte, pode nos conduzir a uma firme renúncia e a uma firme bodhichitta. “Tenho de abrir mão a todas as causas que estão me impedindo de ajudar os outros, e tenho de desenvolver todas as boas qualidades de modo a ser capaz de os ajudar tanto quanto possível”.

A única forma possível de abrir mão das causas das nossas limitações e de desenvolver todas as nossas boas qualidades é através da compreensão correta e completa da vacuidade e do não-agarramento ao conceito do “eu” sólido- “eu sou péssimo, não consigo fazer nada” ou “eu sou tão maravilhoso, sou a oferenda de Deus ao mundo, não preciso aprender nada”. Precisamos compreender causa e efeito.

Quando compreendemos a vacuidade, respeitamos naturalmente a causa e efeito -- como desenvolver as qualidades para ajudar os outros. Com a forte determinação de ajudar os outros (eu tenho que abandonar as causas do meu sofrimento. Eu quero fazê-lo. Não é que eu ‘deva’ abandoná-las, mas quero e sinto mesmo a necessidade de fazer isso.), somos motivados ou movidos, de uma maneira altruísta, a fazer isso. E percebemos que precisamos seguir a causa e efeito para sermos realmente capazes de ajudar os outros. Precisamos reunir todas as qualidades para sermos capazes de melhor ajudar os outros, e isso só pode ser através de um processo de causa e efeito, que só pode funcionar com base na vacuidade.

Com base nessa motivação e compreensão, precisamos depois examinar o que acontece na prática do tantra, do que ela trata. Precisamos de ter confiança que o tantra oferece os métodos mais poderosos para nos livrarmos do que está nos impedindo de ajudar os outros e desenvolver as qualidades com as quais podemos ajudá-los tanto quanto possível. Ou seja, precisamos ter confiança de que a prática do tantra é a maneira mais eficiente de realizar os objetivos da iluminação e de sermos capazes de ajudar melhor os outros.

Quando temos a motivação correta e alguma compreensão da vacuidade, assim como também uma apreciação e uma compreensão do processo da prática tântrica, de tal modo que já temos nela alguma confiança e alguma ideia do que fazer com ela, estamos prontos para entrar na prática tântrica. Somos atraídos por ela de uma forma muito positiva e construtiva e iremos usá-la de uma forma positiva e construtiva.

quarta-feira, 4 de maio de 2022

Introdução ao Shaivismo, Parte 2

 


PARTE 2
Esses ramos da tradição Shaivite foram brilhantemente unificados e sintetizados pela ilustre personalidade, o maior homem deste sistema, o sábio Abhinavagupta .

Sua obra mais importante, Tantraloka, é escrita em versos e unifica todas as diferenças aparentes entre os ramos ou escolas do Shaivismo da Caxemira, oferecendo uma visão coerente e completa do sistema. Percebendo a dificuldade de tal trabalho, Abhinavagupta também escreveu um currículo, em prosa, intitulado Tantrasara (“A Suprema Essência do Tantra ”).

Abhinavagupta é dito ter sido uma manifestação de Shiva . Ainda hoje ele é aceito como um dos maiores filósofos e estetas hindus.

Embora a Índia tenha tido um número bastante impressionante de esteticistas, Abhinavagupta permanece único através de sua brilhante síntese de todas as visões e teorias do Shaivismo da Caxemira, oferecendo-lhes uma perspectiva mais ampla e ampla.

Abhinavagupta nasceu em 950 dC e viveu até o século XI. Diz-se que a certa altura ele saiu com um grande grupo de seus discípulos em uma caverna para meditar, e que nunca mais voltou, pois traduziu para outra dimensão.

Ksemaraja continuou o trabalho de Abhinavagupta e também foi o discípulo mais importante de Abhinavagupta.

Então, gradualmente, a tradição secreta do Shaivismo da Caxemira foi extinta nesta área. Floresceu um pouco no sul da Índia, 300 anos depois, onde havia vários grandes sábios: Jayaratha, que condensou o Tantraloka, e o visionário Bhattanarayana, autor do poema Stavacintamani (The Mysterious Sanctuary Of The Precious Gem Of The Divine Amar).

Finalmente, o último a continuar esta linhagem famosa e espiritual do Shaivismo da Caxemira foi Swami Brahmacharin Lakshman (Lakshmanji), que viveu até 1992.

Sob certos aspectos, o Shaivismo da Caxemira está intimamente relacionado ao cristianismo autêntico. No Shaivismo da Caxemira, como no cristianismo, a ênfase é colocada na graça divina (o Espírito Santo do cristianismo) e no despertar do coração.

Há testemunhos segundo os quais Jesus esteve na Caxemira desde os 12 anos até aos 30 anos. Há documentos descobertos na Caxemira que atestam este facto. No entanto, há uma notável semelhança entre vários aspectos da autêntica tradição cristã e o Shaivismo da Caxemira.

O Shaivismo da Caxemira também tem importantes influências tântricas . Aqui, assim como no tantrismo , encontramos a ideia de que todas as coisas estão misteriosa e intimamente interligadas, como em um modelo holográfico do universo.

Assim, todo o universo é concebido como uma gigantesca rede de ressonâncias virtuais que se estabelecem entre cada ponto (átomo) do universo e todos os outros pontos (átomos).

Conhecendo em profundidade um único aspecto (átomo) do universo, somos então capazes de conhecer todo o universo, porque tudo é ressonância. Nesta fase, a ressonância é um conceito cada vez mais debatido, de crescente importância na nossa cultura e ciência contemporâneas.

No yoga , a contribuição do professor de yoga Gregorian Bivolaru é essencial porque ele introduziu pela primeira vez o conceito atual de ressonância no yoga, que nos permite acessar um nível superior de conhecimento e uma estruturação muito precisa e clara de todo o yoga sistema, bem como do sistema Shivaism.

Shaivismo da Caxemira, Parte 1

 


O Shaivismo da Caxemira, com seu forte acento no reconhecimento pelo ser humano de uma unidade já existente com Shiva , é a mais unitária e monista das seis Escolas Shaivite que tentamos apresentar em nossa série de artigos.

O Shaivismo da Caxemira surgiu no século IX no norte da Índia, que na época era um conglomerado de pequenos reinos feudais. Na pintura da época, os marajás eram os patronos das várias religiões.

O Budismo ainda era muito poderoso e o Shaktismo Tântrico estava florescendo na parte nordeste da Índia. Shaivismo experimentou um renascimento a partir do século VI, quando Shiva era o deus hindu mais adorado.

A escola do Shaivismo da Caxemira originou-se e desenvolveu-se plenamente no vale com o mesmo nome, entre os belos arredores deste país, pois a Caxemira é uma área tranquila e fria, que deu origem a um pensamento filosófico calmo e encantador.

Diz-se que as pessoas criaram seu próprio Deus pessoal, de acordo com suas imagens familiares e, neste caso, podemos até dizer que a espiritualidade atemporal se cristalizou alegremente nesta região.

Os maravilhosos espetáculos dos fenômenos naturais no vale pareciam impregnados do sentimento do amor divino que rege todas as coisas do universo.

É por isso que os filósofos da Caxemira, ao contrário dos filósofos da maior parte do mundo, desistiram de todas as disciplinas dogmáticas e da ética “ortodoxa” e clamaram por várias práticas eficazes e agradáveis ​​em um sistema chamado Shivayoga (o yoga da união com Shiva ) – um certo tipo de rajayoga, ajudado e assistido pelo sentimento de um profundo e intenso amor a Deus.

A vida no vale da Caxemira ensinou aos filósofos um caminho simples, mas detalhado, para alcançar o propósito final da vida. Na generosa região da Caxemira, onde um sistema de irrigação simples assegurava as necessidades da vida, a filosofia Shaivite foi mantida igualmente simples.

A filosofia Shaivite não prescreveu nenhuma “tortura” para o corpo ou para o cérebro através de mortificação dolorosa, e não prescreveu práticas exteriores de controle auto-imposto da mente, dos sentidos e da respiração, como se diz em outras escolas de hindus. filosofia.

Por outro lado, o Shaivismo da Caxemira recomenda alguns métodos precisos de meditação espontânea, livres de qualquer tipo de repressão e constrangimento da mente ou das emoções.

Esses métodos indicam como se pode sublimar gradualmente as emoções e instintos inferiores e crus através da prática de várias técnicas de meditação e concentração.

A beleza natural do vale da Caxemira sempre inspirou a poesia e, por isso, a influência da maioria dos filósofos da Caxemira foi também a de alguns poetas notáveis.

O Shaivismo da Caxemira é o resultado de profundas e profundas experiências e meditações praticadas pelos aspirantes que não tiveram que se preocupar com questões físicas ou mentais. Portanto, essa linha de prática geralmente tinha que ser precedida por outros estágios do sistema de yoga.

De acordo com a tradição do Shaivismo da Caxemira, Shiva estabeleceu 64 sistemas, de filosofias, alguns deles monistas, outros dualistas e poucos deles monista-dualistas. Como alguns desses sistemas foram perdidos, Shiva pediu ao sábio Durvasa para revigorar o conhecimento.

Os filhos de Durvasa, nascidos pela força da mente, foram assim projetados para transmitir os sistemas da seguinte forma: Triambaka – o monista, Amardaka – o dualista e Shrikantha – o monista-dualista.

Assim, em um certo ponto, diz-se que Tryambaka lançou as bases da filosofia e prática do Shaivismo da Caxemira. Diz-se também que o próprio Shiva sentiu a necessidade de resolver as interpretações conflitantes dos escritos sagrados (agamas) e de rejeitar a influência dualista nas antigas doutrinas monistas.

Nos anos 800, diz-se que o grande sábio Vasugupta vivia na montanha Mahadeva, perto de Shrinagar. A tradição diz que uma noite Shiva apareceu em um sonho e revelou a ele o lugar secreto de uma grande escritura esculpida em pedra.

Quando acordou, Vasgupta foi até aquele lugar e encontrou 77 versos lapidar esculpidos em uma rocha, que ele então chamou de Shiva Sutra . Então Vasugupta revelou os versos a seus discípulos e gradualmente a filosofia se espalhou.

A escola do Shaivismo da Caxemira ou Shaivismo do Norte Pratyabhijna Darshana, (a doutrina do reconhecimento), Trikasasana (O sistema Trika da trindade) apareceu nesta base bíblica.

Trika (tríplice, tríade) refere-se à tríplice consideração do divino: Shiva, (o princípio masculino), Shakti (o princípio feminino) e Anu (a alma individual), a posse de três conjuntos de escrituras e de várias outras tríades em que este sistema se baseia.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Filhas de Lilith: a construção social das mulheres a partir dos mitos lilithianos

 

Lilith como a Senhora das Bestas, representação Suméria de cerca de 2000 AEC.

Este ensaio procura refletir sobre a figura de Lilith, a partir dos mitos presentes na obra O livro de Lilith. O resgate do Lado Sombrio do Feminino Universal, de Barbara Koltuv (2017). Lilith foi dita a primeira mulher, a assassina de crianças, a esposa de demônios, a que se aproveita dos homens durante a noite com sua fatal sedução e, até mesmo, aquela que recusou a se deitar por baixo do homem durante a relação sexual. Não são poucas e nem recentes as histórias envolvendo Lilith, personagem presente em diversas mitologias (como a suméria, assíria, babilônica, persa, entre outras) e que sempre aparece em contraposição à bondade e masculinidade de Deus. Tal força que emana dela é um ponto de partida para refletirmos não só sobre a figura de Lilith em si, mas também sobre a construção histórica do estereótipo da mulher e sobre a Lilith que ainda vive dentro de cada mulher.
A autora inicia seu estudo tendo como ponto de partida o Zohar . Segundo ela, a origem de Lilith é tão antiga quanto o surgimento da própria Terra. Quando a Lua e o Sol foram criados ambos tinham a mesma luz, porém os dois não se sentiam à vontade ao conviverem juntos e Deus, prontamente, ordenou que a Lua se afastasse, o que fez com que ela perdesse o seu brilho. Essa diminuição da luz da Lua teve como resultado uma k’lifah (ou casca do mal), da qual teria nascido Lilith que, por esta razão, também é chamada de Lua Negra. Diz o Zohar que, após este acontecimento, Lilith foi expulsa do céu e enviada a Deus para conviver com a humanidade. Nas palavras de Koltuv (2017, p. 27): “Com o advento do patriarcado, o poder de vida e morte tornou-se uma prerrogativa do Deus masculino, enquanto a sexualidade e a mágica foram separadas da procriação e da maternidade.”.
Na tradição bíblica, mais especificamente em Gênesis 1:27, consta que “Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, à imagem de Deus o criou, macho e fêmea os criou”. Em Gênesis 2:18, porém, está escrito que:

Jeová Deus disse: ‘Não é bom que o homem esteja só. Eu lhe farei uma ajudante’ […] Então Jeová Deus fez o homem cair num sono profundo. E enquanto ele dormia, tomou uma de suas costelas e envolveu-a com carne. Da costela que tomara de Adão, Jeová Deus fez uma mulher e conduziu-a ao homem.

No mesmo versículo Adão responde que: “Esta sim é osso dos meus ossos / e carne da minha carne!”. Uma possível interpretação para tal passagem é que, antes de Eva, a mulher feita da costela de Adão, haveria sido criada outra mulher, produzida de barro e, portanto, igual ao homem. Apesar do nome de Lilith só ser citado em livros apócrifos , acredita-se que ela possa ser a primeira mulher que Gênesis 1:27 narra.
Assim como Eva é conhecida por ser a responsável pela queda do homem e pelo pecado original, Lilith é vista também como uma figura sedutora e diabólica. O Zohar associa sempre Lilith e Eva em sua pecabilidade e “adverte, repetidas vezes, que os homens, ao encontrar uma mulher, devem se precaver contra Lilith sedutora.” (KOLTUV, 2017, p.95). Segundo o Zohar, Adão depois da queda teria feito a penitência de ficar durante 130 anos sem ter relações com Eva:

Durante esse tempo, Lilith visitou Adão enquanto ele dormia sozinho, sonhando, e se satisfazia, montada nele, provocando-lhe poluções noturnas. […] O Zohar prossegue dizendo que Lilith se esconderá nos vãos das portas, em poços e latrinas, e continuará a desencaminhar os homens até o dia do juízo final. (KOLTUV, 2017, p. 68-69)

A relação de Lilith e Adão também é comentada no Alfabeto de Ben Sira , o material bibliográfico mais antigo referente à Lilith e que afirma que ela é a primeira mulher criada por Deus. Segundo Ben Sira:

Deus criou Lilith, a primeira mulher, do mesmo modo que havia criado Adão, só que ele usou sujeira e sedimento impuro em vez de pó ou terra. Adão e Lilith nunca encontraram a paz juntos, Ela discordava dele em muitos assuntos e recusava-se a deitar debaixo dele na relação sexual, fundamentando sua reivindicação de igualdade no fato de que ambos haviam sido criados da terra. Quando percebeu que Adão a subjugaria, proferiu o inefável nome de Deus e pôs-se a voar pelo mundo. Finalmente passou a viver numa caverna no deserto, às margens do Mar Vermelho. Ali, envolveu-se numa desenfreada promiscuidade, unindo-se com demônios lascivos e gerando, diariamente, centenas de Lilim ou bebês demoníacos. (apud KOLTUV, 2017, p. 40)

Lilith e Eva, as duas primeiras mulheres

Apesar de também ter sido criada da terra, Lilith tem consciência de que não é matéria inerte e se recusa a viver para sustentar Adão. Ela é a que se nega a uma vida de dependência e submissão e a que igualmente se recusa a se deitar por baixo. Lilith quer igualdade e o poder de ir, vir e agir por si. Ela é “aquela qualidade pela qual uma mulher se nega a ser aprisionada num relacionamento.” (KOLTUV, 2017, p. 44) e que luta para romper com o patriarcado. Eva, pelo contrário, não consegue alcançar a liberdade que Lilith tanto almeja, ela “sente-se acorrentada à Terra pelos homens e pelos filhos” (KOLTUV, 2017, p. 124). Dessa forma, Eva e Lilith vivem dentro de todas as mulheres que, por um lado, querem estabelecer uma família e cuidar dos filhos e, por outro lado, gerar ideias e projetos.
Também são diversos os mitos que falam sobre a permanência de Lilith no deserto após ter fugido de Adão. Muitos deles convergem ao relatar a existência de duas Liliths, que supostamente fazem referências a duas das quatro faces da Deusa e, consequentemente, da Lua da qual Lilith teria nascido : a Lilith-Avó, esposa de Samael, rei dos demônios, e a Lilith-Moça, esposa de Ashmodai, que também é rei dos demônios. De suas três relações (Adão, Samael e Ashmodai), Lilith teria dado origem a um exército de espíritos, demônios e Lilim, que teriam sido capazes de destruir o mundo.

Representação de Lilith feita por Günther Zainer, provavelmente do ano 1473 EC


Outra versão cabalística da história conta que as duas prostitutas que apareceram diante do Rei Salomão para disputar seus filhos recém-nascidos eram Lilith, a estranguladora de bebês, e Igrat, a sedutora do Rei Davi. Segundo o mesmo mito, ambas as mulheres, juntamente com Mahalath e Naamah, teriam sido as responsáveis por estrangular o filho de uma mulher sunamita. Como bem mostra Koltuv (2017, p. 125-126), Lilith é uma figura bastante contraditória neste quesito: ela brinca com os bebês enquanto eles dormem, entrelaçando seus cabelos, fazendo-lhes cócegas e provocando risos e bons sonhos, porém, Lilith também é a que provoca epilepsia e morte nas crianças. Em uma época em que a ciência não explicava os natimortos e a mortalidade infantil, a justificativa dada era divina e feminina.
Atualmente, Lilith não é mais considerada a responsável pelos males das mulheres, da humanidade e das crianças, mas sim parte de um ciclo que é natural e sagrado:

Eva é o lado do feminino instintivo que nutre a vida, enquanto Lilith é o seu oposto, aquele que lida com a morte. Diz-se que as filhas de Eva estão sujeitas à dor de Lilith a cada diminuição da Lua. Lilith rege os Equinócios e os Solstícios. Do mesmo modo que Hécate, seus poderes são superiores nas encruzilhadas instintivas da vida de uma mulher: na puberdade, em cada menstruação, no início e no fim da gravidez, da maternidade e da menopausa. (KOLTUV, 2017, p. 118-122)

Com esse breve repasso dos mitos lilithianos desenvolvidos até aqui a partir da obra de Barbara Koltuv, sobressai o fato de que estas histórias foram criadas, em grande parte, por religiosos do Velho Testamento, judeus, acerca da imagem da mulher. Estas histórias serviam como método de disciplinamento do comportamento e do corpo feminino. Quando ocorre a inquisição feita pelos católicos e, portanto, homens do Novo Testamento, apesar da mudança de religião a tática de disciplinamento das mulheres permaneceu a mesma.
No período da inquisição a associação das mulheres com a figura do Diabo, a crença de que elas tinham poderes sobrenaturais e que eram portadoras de fatal sedução permaneceu a mesma que havia sido moldada durante o judaísmo. Os cristianismos católico e protestante, porém, foram além, uma vez que não só criaram estes mitos sobre a mulher maldita, como também matavam e puniam quem não seguisse a ordem vigente sobre como deveria ser o comportamento feminino. Silvia Federici (2017, p. 314) mostra muito bem como a inquisição católica levou a uma verdadeira caça às mulheres e criou a figura da bruxa, associada às mulheres comuns, que detinham o conhecimento sobre o seu próprio corpo e sobre os ciclos da vida:

Embora a caça às bruxas estivesse dirigida a uma ampla variedade de práticas femininas, foi principalmente devido a essas capacidades – como feiticeiras, curandeiras, encantadoras ou adivinhas – que as mulheres foram perseguidas, pois, ao recorrerem ao poder da magia, debilitavam o poder das autoridades e do Estado, dando confiança aos pobres em sua capacidade para manipular o ambiente natural e social e, possivelmente, para subverter a ordem constituída.

Essas mulheres ditas bruxas, em síntese, eram um problema para a inquisição por serem insubordinadas. O mesmo ocorre com Lilith, que traz à luz questões discutidas até hoje: o prazer feminino desta mulher que quer se deitar por cima do homem, a decisão da mulher para partir, a igualdade entre homens e mulheres e a consequente demonização das mulheres que buscam pela sua liberdade. Na realidade, todas nós somos filhas de Lililith e de uma sociedade patriarcal e misógina, visto que teve sua construção fundamentada no controle e no disciplinamento das mulheres.

  1. O Zohar é um livro da parte mística e, portanto, cabalística dentro do judaísmo e traz uma reflexão a respeito da Torá. É interessante ressaltar que a leitura e interpretação do Zohar eram fechadas somente para os grandes sábios da religião (e que necessariamente eram homens), fato este que reitera o caráter patriarcal das religiões monoteístas.
  2. Os apócrifos são livros referentes ao Novo ou Velho Testamento que não foram incluídos na Bíblia pelo Magistério da Igreja Católica. A justificativa para esta exclusão é que estas obras são heréticas, não portam a verdadeira palavra de Deus e tampouco foram reveladas pelo Espírito Santo.
  3. Ben Sira também foi o responsável por escrever o livro apócrifo Eclesiásticos, que pertence ao Velho Testamento. Apesar dessa obra não fazer parte da Bíblia Sagrada canônica, ela era relativamente aceita pelos judeus de Alexandria, fazendo parte, inclusive, dos livros deuterocanônicos presentes na Septuaginta, antiga tradução em grego do Antigo Testamento.
  4. Barbara Koltuv em sua obra não faz a associação das duas fases de Lilith com a Deusa/Lua. São diversos os estudos que abordam o tema do Sagrado Feminino e relatam a essência tripartite da Deusa cultuada principalmente pelo povo Wicca, vide, por exemplo, Barroso (2017). A Lua Crescente é associada à Deusa-Virgem, determinada e responsável por novos começos; a Lua Cheia pela Deusa-Mãe, doadora da vida e grande nutridora; e a Lua Minguante pela Deusa-Anciã, detentora de toda a sabedoria.

Bibliografia
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BARROSO, Eduarda Neto de. Resgate do sagrado feminino: Fundamentos e práticas da Wicca. (Trabalho de conclusão de curso). Juiz de Fora: UFJF, 2017. Disponível em: [http://www.ufjf.br/bach/files/2016/10/EDUARDA-NETO-DE-BARROSO.pdf]
FEDERICI, Silvia. O Calibã e a Bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.
KOLTUV, Barbara Black. O livro de Lilith. O resgate do Lado Sombrio do Feminino Universal. São Paulo: Cultrix, 2017.