Alexander Berzin, 2002
Primeira Parte: Perguntas e
Dúvidas Fundamentais Sobre o Tantra
1 O Significado de Tantra
A Definição da Palavra Tantra
Os ensinamentos do Buda incluem sutras e tantras. Os
sutras apresentam os temas básicos da prática para se adquirir a liberação dos
problemas recorrentes sem controlo (sânsc. samsara) e, além disso, para
alcançar o estado iluminado de um Buda, com a capacidade de ajudar os outros
tanto quanto possível. Os temas incluem métodos para o desenvolvimento da
auto-disciplina ética, da concentração, do amor, da compaixão e de uma
compreensão correta de como as coisas realmente existem. Os tantras apresentam
práticas avançadas baseadas nos sutras.
A palavra sânscrita tantra significa o urdume de um tear ou os
fios de uma trança. Como os fios de urdume, as práticas tântricas servem como
uma estrutura que nos permite entrelaçar os temas do sutra para tecer a
tapeçaria da iluminação. Além disso, o tantra combina as expressões físicas,
verbais e mentais de cada prática, que se entrelaçam, criando um percurso de
desenvolvimento holístico. A prática do tantra é extremamente avançada, uma vez
que não podemos integrar e praticar simultaneamente todos os temas do sutra sem
termos previamente treinado em cada um deles a nível individual.
A raiz da palavra tantra significa esticar ou continuar sem
interrupções. Enfatizando esta conotação, os eruditos tibetanos traduziram o
termo como gyu (rgyud), que significa uma continuidade
ininterrupta. Aqui, a referência é à continuidade através do tempo, como numa
sucessão de momentos num filme, e não à continuidade através do espaço, como
numa sucessão de segmentos do pavimento. Além disso, as sucessões discutidas no
tantra assemelham-se a filmes eternos: sem princípio nem fim.
Dois filmes nunca são iguais e duas cópias do mesmo filme nunca podem
partilhar o mesmo rolo da película. Similarmente, as sucessões intermináveis
mantêm sempre as suas individualidades. Além disso, as imagens dos filmes
passam uma de cada vez, com tudo a mudar de imagem a imagem. Do mesmo modo, os
momentos das sucessões intermináveis são efémeros, com um só momento ocorrendo
de cada vez e sem nada de sólido permanecendo através de todas as sucessões.
Continuidades Mentais como Tantras
O exemplo mais proeminente de uma sucessão interminável é a continuidade
mental (fluxo-mental), a sucessão interminável dos momentos de uma mente
individual. No budismo, mente refere-se a um mero experienciar
individual e subjetivo de algo e não a um objeto, físico ou imaterial, que
produz o experienciar, ou que seja uma ferramenta que alguém use para
experienciar coisas. E mais, uma continuidade mental não é um fluxo de
experiências que se acumulam de tal modo que uma pessoa tenha mais experiência
do que outra. Uma continuidade mental consiste simplesmente numa sucessão
ininterrupta de momentos do funcionamento mental – o mero experienciar de
coisas. As coisas experienciadas incluem visões, sons, sentimentos,
pensamentos, o sono e até a morte. Mero implica que o seu
experienciamento não precisa de ser deliberado, emocionalmente tocante e nem
sequer consciente.
E mais, o experienciar de algo é sempre individual e subjetivo. Duas
pessoas podem experienciar ver o mesmo filme, mas a sua experiência não seria a
mesma – uma pode gostar dele; a outra pode não gostar. O modo como elas
experienciam o filme depende de muitos fatores interrelacionados, tais como os
seus humores, a sua saúde, os seus companheiros e até as cadeiras em que se
sentam.
Seres individuais são aqueles com continuidades
mentais. A cada momento da sua existência, eles experienciam algo. Agem com
intenção – mesmo se não planeada conceptualmente – e experienciam
subjetivamente os efeitos imediatos e a longo prazo do que fazem. Assim, as
continuidades mentais dos seres individuais – o seu experienciar das coisas –
mudam como eles de momento a momento, e as suas continuidades mentais continuam
de uma vida para a vida seguinte, sem princípio nem fim. O budismo aceita como
fato não apenas que as continuidades mentais durem eternamente, mas também que
elas carecem de um início absoluto, seja a partir da obra de um criador, seja
da matéria/energia ou do nada.
Seres individuais e, assim, as continuidades mentais, interagem um com o
outro, mas continuam distintos, mesmo na Budeidade. Embora o Buda Shakyamuni e
o Buda Maitreya sejam equivalentes nas suas realizações da iluminação, eles não
são a mesma pessoa. Cada um tem conexões únicas com seres diferentes, o que
esclarece o fato de que alguns indivíduos possam encontrar e tirar benefício de
um Buda em particular e não de outro.
Os filmes mantêm as suas individualidades sem requererem ou conterem
sinais fixos inatos, tais como os seus títulos, sempre presentes como partes de
cada momento, dando aos filmes identidades individuais exclusivamente através
dos seus próprios poderes. Os filmes mantêm identidades individuais dependendo
meramente de fatores mutáveis interligados, tais como uma sequência sensata de
imagens. Do mesmo modo, as continuidades mentais intermináveis continuam [para
sempre] sem sinais fixos inatos, tais como almas, eus ou personalidades, que
não afetadas e sem nunca mudar, continuam durante uma vida e de uma vida para a
vida seguinte e que, através dos seus próprios poderes, lhes dão identidades
individuais. Para sustentar as suas identidades individuais, as continuidades
mentais dependem meramente de fatores mutáveis interligados, tais como
sequências sensatas de experienciar coisas de acordo com princípios de causa e
efeito comportamentais (sânsc. karma). Mesmo a um nível mais geral, as
continuidades mentais não têm identidades inerentes fixas, tais como: ser
humano, mosquito, masculino ou feminino. Dependendo das suas ações, os seres
individuais aparecem em formas diferentes em cada vida – às vezes com mais
sofrimentos e problemas, às vezes com menos.
O Termo Tantra com Referência à Natureza Búdica
Embora as continuidades mentais, tais como os seres individuais, não
tenham almas inatas que através dos seus próprios poderes lhes dêem as suas
identidades, elas têm, não obstante, outras características que as acompanham
como facetas integrais das suas naturezas. Estas facetas inatas também
constituem tantras – sucessões de momentos sem nenhum princípio nem fim. As
facetas inatas intermináveis que se transformam nas facetas iluminadoras de um
Buda, ou que permitem que cada continuidade mental se transforme na
continuidade de um Buda, consistem dos fatores da natureza búdica dessa
continuidade.
Por exemplo, as sucessões ininterruptas de momentos de aparência física,
comunicação e funcionamento mental (corpo, fala e mente), a operação das boas
qualidades e a atividade acompanham a sucessão de momentos de cada continuidade
mental para sempre, embora as formas específicas das cinco variem a cada
momento. A aparência física pode ser invisível ao olho humano; a comunicação
pode ser involuntária ou meramente através da linguagem corporal; e o
funcionamento mental pode ser mínimo, como quando estamos a dormir ou
inconscientes. As boas qualidades, tais como compreendermos e apreciarmos os
outros, e capacidades, podem operar a níveis minúsculos ou podem estar apenas
latentes; e a atividade pode ser meramente autónoma. Não obstante, experienciar
algo individual e subjetivamente a cada momento envolve ter-se continuamente
uma aparência física, uma forma de comunicar alguma informação, um
funcionamento mental, um nível operante de boas qualidades e alguma atividade.
O fato de as sucessões ininterruptas dos momentos das cinco facetas
inatas acompanharem a continuidade mental de cada ser em cada renascimento
esclarece o fato de as sucessões das cinco continuarem a acompanhar a
continuidade de cada ser, incluindo a dos Budas. De outro ponto de vista,
momentos das cinco continuam a ocorrer em sucessão ininterrupta até depois da
iluminação, mas agora as suas formas manifestam-se como as cinco facetas
iluminadoras de um Buda. Elas são iluminadoras no sentido em que são os
meios mais eficazes para conduzir os outros à iluminação.
Sucessões Sem Princípio que Podem Ter um Fim
Como tantras, as continuidades intermináveis dos fatores da natureza
búdica de um indivíduo entrelaçam-se juntamente para formar, a cada momento, um
todo integrado, funcionando juntos como uma rede. Noutro sentido, as
continuidades intermináveis constituem os fios de urdume sobre os quais se
entrelaçam sucessões de momentos de características acompanhantes extras de
continuidades mentais. Muitas características interligadas são também sem
princípio, mas nem todas elas continuam para sempre. Algumas podem ter um fim
e, assim, não constituem facetas integrais da natureza da continuidade. As mais
significativas são: as continuidades sem princípio da confusão sobre como as
coisas existem, os hábitos de tal confusão e os problemas e limitações recorrentes
que produzem incontrolavelmente. Aqui, para simplificar a discussão, estamos a
usar o termo confusão em vez de não-compreensão (ignorância), mas sem
nenhuma conotação de desorganização, desorientação ou demência.
As sucessões sem princípio de momentos de níveis diferentes de confusão
e dos seus hábitos podem acabar, porque os seus exatos opostos, a sucessão de
momentos de compreensão e os seus hábitos, podem substituí-los e removê-los
para sempre. Enquanto sucessões de momentos de confusão e os seus hábitos
acompanharem as continuidades mentais, os seus fatores de natureza búdica não
podem funcionar na sua capacidade máxima. Enquanto as continuidades mentais
estiverem nessa condição, os indivíduos denotados por elas continuarão como seres
limitados (seres sencientes). Os fatores funcionam a níveis máximos apenas
com a remoção total de todas as características limitativas ou “nódoas
momentâneas,” ou seja, com a remoção total de todos os níveis de confusão e dos
seus hábitos. Quando as continuidades de todas as características limitativas
pararem para sempre, os indivíduos deixarão de ser seres limitados. Como
indivíduos, as suas continuidades sem fim continuam, mas agora os seres
transformaram-se em budas.
As Explicações Nyingma e Kagyu sobre o Tantra
Todas as quatro tradições do budismo tibetano – Nyingma, Kagyu, Sakya e
Gelug – aceitam como uma definição de tantra as sucessões eternas de momentos
de fatores interligados da natureza búdica. As explicações especiais de cada
tradição clarificam o tópico ainda mais e complementam-se umas às outras.
Primeiro vamos examinar a apresentação geral partilhada entre Nyingma e Kagyu,
uma vez que ela se especializa na discussão do tantra em termos de natureza
búdica em geral. As suas apresentações provêm de A Interminável Continuidade
Última ( O Eterno Contínuo Último) de Maitreya.
Maitreya explicou que embora as sucessões de momentos de fatores da
natureza búdica continuassem para sempre, elas podem ser: não-refinadas,
parcialmente refinadas ou totalmente refinadas. A distinção deriva de [três
condicionantes]: se sucessões de momentos de todos os níveis de confusão e seus
hábitos acompanham ininterruptamente a continuidade mental; se apenas algumas
delas o fazem por algum tempo; ou se nenhumas delas nunca mais a acompanham.
Estas três condições das continuidades intermináveis de fatores da natureza
búdica são os tantras de base , do caminho e resultantes.
Como tantras de base, as continuidades sempre disponíveis de fatores da
natureza búdica são os materiais com que trabalhamos para atingir a iluminação.
Nesta perspectiva, os fatores são não-refinados ou “impuros” no sentido em que
as sucessões de momentos de todos os níveis de confusão e seus hábitos estão
sempre entrelaçados com os fatores, limitando o seu funcionamento a vários
níveis.
No caminho para a iluminação, os praticantes trabalham para remover as
limitações, parando, por fases, as continuidades dos vários níveis de confusão
e seus hábitos que se entrelaçam com os seus corpos, comunicação, mentes, boas
qualidades e ações. Consequentemente, durante o processo de purificação, as
continuidades dos fatores de natureza búdica, como tantras do caminho, são
parcialmente refinadas e em parte não-refinadas. Às vezes, períodos de
compreensão plena acompanham os fatores; outras vezes, seguem-se períodos com
apenas o impulso de compreensão. Ocasionalmente, sucessões de momentos de
confusão cessam temporariamente. Depois, as continuidades de alguns níveis
resumem, mas gradualmente nenhuma delas retornará para sempre. Similarmente, os
hábitos de confusão deixam ocasionalmente de produzir momentos de confusão; mas
eventualmente as continuidades dos hábitos cessam para sempre.
Ao nível resultante da Budeidade, as continuidades dos fatores de
natureza búdica, como tantras resultantes, são totalmente refinadas no sentido
em que estão para sempre completamente livres de períodos acompanhantes de
quaisquer níveis de confusão ou dos seus hábitos. Assim, os fatores de natureza
búdica funcionam para sempre nas suas capacidades plenas como interligadas
facetas iluminadoras de um Buda, por exemplo como as faculdades mentais,
comunicativas e físicas iluminadoras de um Buda, assim como as suas boas
qualidades e atividades.
O Papel das Figuras Búdicas no Tantra
As figuras búdicas representam os fatores de
natureza búdica durante as fases refinadas ou “puras” quando sucessões de
momentos de compreensão plena acompanham as suas continuidades. Como asfiguras
búdicas têm corpos, comunicação, mentes, boas qualidades e ações que
trabalham em conjunto como uma rede integrada, elas são adequadas para
representar estes fatores de natureza búdica. Além disso, frequentemente as
figuras têm caras, braços e pés múltiplos. O leque das caras e dos membros
representam temas do sutra, muitos dos quais também estão entre os fatores de
natureza búdica. Os praticantes de tantra usam as figuras na meditação para
estimular o processo de purificação.
O termo sânscrito para figuras búdicas, ishtadevata,
significa deidades escolhidas, ou seja, deidades escolhidas para a prática da
transformação em Buda. São “deidades” no sentido em que as suas capacidades
transcendem as dos seres comuns; contudo, elas não controlam as vidas das
pessoas nem requerem adoração. Assim, os eruditos tibetanos traduziram o termo
como lhagpay lha (lhag-pa'i lha), deidades especiais, para
diferenciá-las de deuses mundanos ou de Deus Criador.
O equivalente mais comum em tibetano, yidam (yi-dam),
denota mais claramente o significado pretendido. Yi significa mente e dam
quer dizer damtsig (dam-tshig, sânsc. samaya), uma ligação
íntima. Os praticantes de tantra estabelecem uma ligação com figuras búdicas
masculinas e femininas, tais como Avalokiteshvara e Tara, ao se imaginarem a si
mesmos como tendo as facetas iluminadoras da aparência física, comunicação,
funcionamento mental, boas qualidades e atividades destas figuras. Mais
precisamente, enquanto as continuidades dos seus fatores de natureza búdica
ainda forem parcialmente não-refinadas, como tantras do caminho, os praticantes
vínculam-nas ou enlaçam-nas com as continuidades dos fatores imaginados como
facetas totalmente refinadas das figuras búdicas. Mesmo quando os
praticantes têm apenas compreensões incompletas em relação a como as coisas
existem, o método tântrico geral para remover as nódoas momentâneas dos
períodos de confusão e dos seus hábitos das continuidades intermináveis dos
fatores de natureza búdica é imaginarem os seus fatores de natureza búdica
parcialmente não-refinados funcionando como as facetas totalmente refinadas da figura
búdica.
Resumindo, os fatores de natureza búdica continuam sendo os mesmos
fatores quer funcionem como tantras de base, do caminho ou resultantes. A
continuidade mental manifesta sempre alguma forma de aparência física,
comunicação de algo e funcionamento mental, assim como algum nível operante de
boas qualidades e alguma atividade. A única diferença é o grau em que as
sucessões de momentos de níveis diferentes de confusão e dos seus hábitos
acompanham as continuidades dos fatores e limitam o seu funcionamento.
Então, de acordo com as apresentações Nyingma e Kagyu, a matéria do
tantra é o entrelaçar das condições da base, do caminho e resultante das
continuidades intermináveis dos fatores de natureza búdica para tecer um método
a fim de se atingir a iluminação. Especificamente, o tantra diz respeito a
métodos para trabalharmos com os períodos dos fatores de natureza búdica
enquanto tantras do caminho, de modo a purificarmos as sucessões dos fatores
enquanto tantras de base, para que eles funcionem, finalmente, como
continuidades intermináveis dos tantras resultantes. A prática tântrica efetua
esta transformação ao unir as continuidades dos fatores não-refinados da
natureza búdica com as sucessões de momentos da sua situação refinada, como
representada pelas facetas iluminadoras das figuras búdicas.
A Apresentação Sakya
A apresentação Sakya do significado do tantra deriva do Tantra de
Hevajra, um texto da classe mais elevada do tantra. Esta apresentação
explicita a relação entre as figuras búdicas e os seres comuns que permite uma
ligação das facetas correspondentes aos dois na prática do tantra.
Um tópico exclusivo ao tantra mais elevado é a continuidade de luz
clara (mente de luz clara), que é o nível mais sutil da continuidade mental
de todos. Todas as continuidades mentais têm níveis de luz clara de
experienciar as coisas que, como natureza búdica última, lhes fornecem a
continuidade interminável mais profunda. Níveis mais óbvios de se experienciar
as coisas, tais como aqueles aonde a percepção sensorial e o pensamento
conceptual ocorrem, não continuam, na verdade, de uma vida para a vida
seguinte. Além disso, eles acabam para sempre com a realização da iluminação.
Só as sucessões ao nível da luz clara é que continuam ininterruptamente, mesmo
depois de nos termos transformado em Buda. Se os seres individuais fossem
análogos aos rádios, então os níveis mais óbvios das suas continuidades mentais
seriam semelhantes à emissão de diferentes estações dos rádios, enquanto que os
seus níveis de luz clara se assemelhariam como se os rádios estarem
simplesmente ligados. Contudo, a analogia não é exata. Os rádios podem deixar
de tocar, enquanto que as continuidades mentais nunca cessam o seu fluir.
Não obstante o nível em que ocorre, o mero experienciar das coisas, individual
e subjetivo, envolve o surgimento das aparências das coisas (claridade) e o
ocuparmo-nos com elas mentalmente (consciência). Ou seja, não perceptionamos
diretamente os objetos externos, mas meramente aparências ou as suas
representações mentais que surgem como parte do ato de percepcionar. As
aparências, aqui, incluem não só as visões das coisas mas também os seus sons,
cheiros, gosto e sensações físicas, assim como os pensamentos sobre elas. A
ciência ocidental descreve o mesmo ponto a partir de uma perspectiva física. Ao
percepcionarmos coisas, na verdade não cognizamos objetos externos, mas apenas
complexos de impulsos eletroquímicos que representam os objetos no sistema
nervoso e no cérebro. Embora todos os níveis de experienciação das coisas envolvam
o surgimento de aparências delas, a continuidade de luz clara é a verdadeira
fonte que produz todas as aparências.
Ocuparmo-nos mentalmente com aparências significa ver, ouvir, cheirar,
provar, sentir fisicamente, pensar nelas ou sentir algo sobre elas
emocionalmente. A ocupação mental pode ser subliminar ou até inconsciente. E
mais, produzir as aparências das coisas e ocupar-se mentalmente com elas são
duas maneiras de descrever o mesmo fenómeno. O surgimento de um pensamento e o
pensar um pensamento são de fato o mesmo evento mental. O pensamento não surge
e depois pensamos nele: as duas ações mentais ocorrem simultaneamente porque
elas descrevem o mesmo evento.
A discussão Sakya do tantra concentra-se num fator específico da
natureza búdica, ou seja, na sucessão interminável dos momentos da atividade
inata da continuidade de luz clara de fazer surgir aparências [a partir] de si
própria. O fazer surgir das aparências é automático, não intencional e
inconsciente. Podemos deliberadamente olhar para algo; mas quando nós vemos, a
nossa continuidade de luz clara não constrói deliberadamente uma aparência
desse algo. Além disso, as aparências que surgem da continuidade de luz clara
podem ser da base física da continuidade – nosso corpo – ou de quaisquer outros
objetos que ela percepciona.
Aqui, a questão principal é que o surgimento de aparências ocorre
inseparavelmente a dois níveis: impróprio e sutil. Inseparavelmente (yermey,
dbyer-med) significa que se um nível ocorre validamente, o outro nível
também ocorre validamente. Neste contexto, as aparências impróprias são as dos
seres comuns e seus ambientes; as aparências sutis são as das figuras búdicas e
suas envolvências.
Os seres comuns e as figuras búdicas são como níveis quânticos das
continuidades de luz clara. As partículas subatómicas têm vários níveis de
energia quântica nas quais vibram igualmente de um modo válido. O nível em que
uma partícula está a vibrar é uma função da probabilidade em qualquer momento:
não se pode dizer ao certo que a partícula está a vibrar apenas num nível e não
no outro. De fato, de acordo com a mecânica quântica, uma partícula pode vibrar
simultaneamente a vários níveis. Similarmente, não se pode dizer que num
momento específico um ser individual tenha apenas uma aparência e não outra,
porque o nível em que uma continuidade de luz clara aparece a qualquer momento
é uma função da probabilidade.
A continuidade interminável da atividade mental que produz este par de
aparências inatamente ligadas pode ser não refinada, parcialmente refinada ou
totalmente refinada, dependendo das sucessões de momentos de confusão e dos
seus hábitos que a acompanham. A matéria principal do tantra, como discutida na
escola Sakya, é o processo em que a continuação da prática com figuras búdicas
purifica este fator da natureza búdica, de modo a produzir uma sucessão
interminável de aparências completamente livres de períodos acompanhantes de
confusão e dos seus hábitos.
A Explicação Gelug
Ao explicitar o significado do tantra como uma continuidade eterna, a
tradição Gelug segue o Um Apendice do Tantra de Guhyasamaja. O aspecto
principal da natureza búdica aqui enfatizado é a vacuidade da continuidade
mental – a sua ausência de existir em modos impossíveis. As continuidades
mentais não existem como inerentemente danificadas e impuras por natureza.
Nunca existiram nem nunca irão existir. Não há continuidades eternas de
características inatas que, as acompanhando e através dos seus próprios
poderes, as fazem existir desse modo impossível. Porque esta ausência total é
sempre o caso, quando os praticantes compreendem inteiramente este fato, podem
fazer com que as continuidades de confusão e seus hábitos deixem de acompanhar
as suas continuidades mentais de modo a que os seus fatores da natureza búdica
possam funcionar inteiramente como facetas iluminadoras de um Buda. Uma vez que
as continuidades mentais continuam para sempre como continuidades
intermináveis, as suas vacuidades permanecem sempre um fato, permitindo a
purificação e a transformação.
O método de purificação refere-se aos estágios da prática com figuras
búdicas. Ao contrário de pessoas comuns, as figuras búdicas não crescem de
fetos, não envelhecem e não morrem. Uma vez que elas estão sempre disponíveis
em qualquer forma, a meditação com elas pode formar uma continuidade
interminável. O resultado do processo de purificação é a continuidade
interminável da Budeidade.
Resumindo, através de uma continuidade interminável de prática
meditacional de união a figuras búdicas, os praticantes de tantra alcançam a
continuidade interminável da Budeidade, baseada no fato interminável da
vacuidade das suas continuidades mentais. O tantra é chamado veículo
resultante porque a prática de tantra nos envolve no produzir de aparências
de nós próprios como figuras búdicas que se assemelham ao estado resultante da
iluminação.
Sumário
A matéria do tantra diz respeito às continuidades intermináveis
conectadas com a continuidade mental. As continuidades incluem fatores da
natureza búdica tais como boas qualidades básicas, um nível de luz clara de
experienciar as coisas, a sua atividade de produzir auto-aparências e a sua
vacuidade. As continuidades também incluem figuras búdicas e o estado
iluminado. As quatro tradições do budismo tibetano explicam várias maneiras
como as sucessões de momentos destas continuidades eternas se entrelaçam como
bases, caminhos e resultados. Elas compartilham a característica de que o
tantra envolve um caminho de prática com figuras búdicas para purificar uma
base, a fim de atingir a iluminação como resultado. Elas também concordam que
as características físicas das figuras búdicas servem como representações
multivalentes e fornecem os urdumes para entrelaçar os vários temas da prática
do sutra. O termo tantra refere-se a esta matéria intricadamente
entrelaçada e aos textos que a discutem.
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