sexta-feira, 2 de maio de 2014

Tantra - A Suprema Compreensão

Transcender a dualidade é visão soberana.

Dominar abstrações é prática régia.

A trilha da não-prática é o caminho de todos os Budas.

Quem pisa essa trilha alcança o estado de Buda.

Transitório é este mundo;

como fantasmas e sonhos ele não tem substância alguma.

Renuncia a ele, abandona teus parentes,

corta os laços da luxúria e do ódio,

e medita em bosques e montanhas.

Se, sem esforço,

permaneceres desprendidamente em estado natural,

logo Mahamudra conseguirás,

e obterás a não-obtenção.


Há dois caminhos. Um é o caminho do guerreiro, do soldado; o outro é o caminho do rei, o Caminho Real. A Ioga é o primeiro, e o Tantra é o segundo. Portanto, precisas conhecer, primeiro, o que é o caminho do soldado, do guerreiro e, só então, poderás compreender o que Tilopa quer dizer quando se refere ao Caminho Real.
Um soldado tem de lutar, polegada por polegada; um soldado tem de ser agressivo, um soldado tem de ser violento; o inimigo deve ser destruído, ou conquistado

A Ioga tenta criar um conflito dentro de ti. Oferece-te nítida distinção entre o que é errado e o que é certo, o que é bom e o que é maus, o que pertence a Deus e o que pertence ao diabo. E quase todas as religiões, exceto Tantra, seguem o caminho da Ioga. Dividem a realidade e criam um conflito interior; através desse conflito, prosseguem.




Por exemplo, tens ódio em ti. O caminho do guerreiro é destruir o ódio interior. Sentes cólera, ganância, desejo sexual e milhões de coisas - o caminho do guerreiro é destruir tudo o que é errado, negativo, e desenvolver tudo quanto seja positivo e certo. O ódio deve ser destruído e o amor, desenvolvido. A cólera deve ser completamente destruída e a compaixão, criada. O sexo deve se afastar e dar lugar ao brahmacharya, ao puro celibato. A Ioga imediatamente corta-te com uma espada em duas partes: o certo e o errado; e o certo deve vencer o errado.



Que farás? A cólera está em ti - que sugere a Ioga que faças? Sugere que cries o hábito da compaixão, que cries o oposto, que o tornes tão habitual a ponto de começares a funcionar como um robô - daí ser chamado o caminho do soldado. Por todo o mundo, através da história, o soldado tem sido treinado para uma existência de robô: tem de criar hábitos.



Os hábitos funcionam sem a consciência, não precisam de percepção; podem mover-se sem ti. Se tens hábitos - e toda a gente os tem - podes observar isso. Um homem tira seu maço de cigarros do bolso - observa-o - ele pode não estar consciente do que está fazendo. Tal como um robô, ele procura o bolso. Se ele estiver intimamente inquieto, imediatamente sua mão irá até o bolso, apanhará um cigarro, começará a fumar. Certamente atirará fora a parte que resta; pode ter realizado todos esses gestos sem ter consciência de que os estava realizando.



Ensinamos ao soldado uma existência de robô. O soldado tem de fazer e obedecer; não precisa estar consciente. Quando recebe ordem para virar à direita, tem de virar; não pode pensar se deve ou não virar, porque, se começar a pensar, então será impossível, as guerras não poderão continuar neste mundo. Pensar não é necessário, nem a consciência é necessária. O soldado deve, apenas, ter a percepção suficiente para entender as ordens; é tudo. Um mínimo de percepção: a ordem é dada, e, imediatamente, como um mecanismo, ele a está cumprindo. Não que ele se volte para a esquerda, quando lhe ordenam que se volte para a esquerda - apenas ouve e volta-se. Não está se voltando; cultivou aquele hábito. Está, apenas, acendendo ou apagando a luz - apenas um botão e a luz se acende. Dizem: - “Virar à esquerda!”, o botão é apertado e o homem se move para a esquerda.



William James contou que, certa vez, estava sentado num café e um velho soldado da reserva - na reserva havia mais de vinte anos - ia passando com uma cesta de ovos. Subitamente, William Jones fez uma brincadeira. Gritou “Atenção!” e o pobre homem parou, na posição comandada. Os ovos caíram-lhe da mão e se quebraram. Ele ficou muito zangado, veio correndo e disse - “Que tipo de brincadeira é essa?”



Mas William James argumentou: - “Não precisas obedecer. Todo mundo é livre para gritar ‘atenção’. Não és forçado a atender. Quem te disse que atendesses? Devias ter seguido teu caminho.”



Disse ao homem: - “Isso não é possível, porque é automático. Já há vinte anos estou fora do meio militar, mas o hábito está profundamente enraizado.” Mediante muitos anos de treinamento, um reflexo condicionado é criado.



A expressão “reflexo condicionado” é boa. Foi criada por um psicólogo russo, Pavlov. Diz que simplesmente refletes; alguém atira algo em teus olhos, nem pensas em piscar ou fechar os olhos, e eles simplesmente fecham-se. Uma mosca vem voando e fechas os olhos; não precisas pensar, não há necessidade: é um reflexo condicionado - acontece, simplesmente. Está nos hábitos do teu corpo, em teus ossos. Acontece, simplesmente! Nada pode ser feito contra isso.



O soldado é treinado para existir como um robô. Deve existir através de reflexos condicionados. O mesmo se dá na Ioga. Tu te zangas e a Ioga diz: - “Não fiques zangado, é melhor que cultives o oposto, a compaixão.” Aos poucos, tua energia começa a mover-se no hábito da compaixão. Se perseverares por um longo tempo, a cólera desaparecerá completamente e tu sentirás compaixão. Mas estarás morto, não vivo. Serás um robô, não um ser humano. Terás compaixão, não porque tenhas compaixão, mas só porque cultivaste um hábito.



Podes cultivar um mau hábito e podes cultivar um bom hábito. Alguém pode cultivar o hábito do fumo, outro alguém pode cultivar o hábito de não fumar; uns cultivam o estilo não-vegetariano de alimentação, outros cultivam o estilo vegetariano - mas ambos cultivam e, no julgamento final, ambos são iguais porque ambos vivem de hábitos.



Essa questão deve ser ponderada muito profundamente, porque é muito fácil cultivar um bom hábito, mas é muito difícil tornar-se bom. E o substituto de um bom hábito é barato, pode ser conseguido facilmente.



Agora, particularmente na Rússia, estão desenvolvendo uma terapia: a terapia de reflexos condicionados. Dizem que as pessoas não podem deixar seus hábitos. Alguém fuma há vinte anos - como esperar que deixe de fumar? Podem explicar-lhe que aquilo é mau, os médicos podem dizer-lhe que se trata, mesmo, de uma situação perigosa, que pode originar um câncer, mas há vinte anos de longo hábito e, agora, está enraizado; foi ter ao núcleo mais profundo de seu corpo, está em seu metabolismo. Mesmo que queira, mesmo que deseje, mesmo que deseje sinceramente parar, será difícil que o consiga, porque não é uma questão de desejo sincero: aos vinte anos de contínua prática - e é quase impossível. Portanto, o que fazer?



Na Rússia dizem que não há necessidade de fazer nada e não há necessidade de explicar-lhe nada. Desenvolveram uma terapia: o homem começa a fumar e eles lhe dão um choque elétrico. O choque, a dor que ele causa e o fumo reúnem-se, tornam-se associados. Durante sete dias, o homem permanece hospitalizado e, sempre que começa a fumar, imediatamente, automaticamente, dão-lhe um choque elétrico. Depois de sete dias, o hábito está rompido. Se o persuadirem a fumar ele começará a tremer. No momento em que segura um cigarro, todo o seu corpo treme, por causa da idéia do choque.



Dizem, então, que nunca mais fumará: romperam o hábito por meio de um duro tratamento, por meio de choques. Mas esse homem não se tornará um Buda porque perdeu um velho hábito através de tratamento de choques. Todos os hábitos podem ser modificados através do tratamento de choques. Será ele um Buda? Esclarecido? Porque não mais tem hábitos nocivos? Não. Ele nem mesmo será um ser humano, agora - será um mecanismo. Terá medo das coisas; não poderá fazê-las porque lhe foram dados novos hábitos de medo.



Essa é a significação integral de “inferno”: todas as religiões têm usado tratamentos de choque. O inferno não está em parte alguma, não há qualquer “céu”. Ambas essas coisas são estratagemas, velhos conceitos de psicoterapia. Pintaram o inferno tão horrível que uma criança se toma de medo dele desde o início de sua infância. Basta mencionar a palavra inferno e o medo surge; ela treme. Esse é apenas um estratagema para evitar maus hábitos. Assim, muito prazer, felicidade, beleza e vida eterna são prometidas no céu, se seguires os bons padrões. Tudo quando a sociedade disser que é bom, tens de seguir. O céu ali está para ajudar-te em direção às coisas positivas; e o inferno ali está para evitar que sigas em direção negativa.



Tantra é a única religião que não usou de tais reflexos condicionados, porque Tantra diz que deves florescer como um ser perfeitamente acordado, não como um robô. Assim, se compreenderes Tantra, o hábito é que será mau; não há maus hábitos, não há bons hábitos - o hábito é mau. E é preciso estar acordado para que não haja hábitos. Tu vives, simplesmente, momento a momento com integral consciência, e não através de hábitos. Viver sem hábitos: esse é o Caminho Régio.



Por que é Régio? Um soldado tem de obedecer, mas um rei não precisa fazer isso. Um rei está acima, dá ordens; não recebe ordens de ninguém. Um rei nunca vai à luta, só os soldados vão. Um rei não é um lutador. Um rei vive a mais calma de todas as vidas. Isso é apenas uma metáfora. Um soldado tem de obedecer; um rei vive, simplesmente, desprendido e natural; não há ninguém acima dele. Tantra diz que não há ninguém acima de ti. A quem tens de seguir, através de quem deves organizar teu padrão de vida, através de quem tens de tornar-te imitador? - não há ninguém. Vive uma vida desprendida, natural, fluida - a coisa única é esta: sê perceptivo.



Lutando, poderás adquirir bons hábitos, mas serão hábitos não naturais. As pessoas dizem que o hábito é uma segunda natureza. Pode ser, mas lembra-te da palavra “segunda”. Não é natural; pode parecê-lo, mas não é.



Que diferença haverá entre compaixão verdadeira e compaixão cultivada? A compaixão verdadeira é um resposta - a situação e a resposta. A compaixão verdadeira é sempre viva: algo aconteceu e teu coração flui em direção àquilo. Uma criança cai e tu corres e ajudas a criança a levantar-se; mas isso é uma resposta. Uma compaixão cultivada, uma falsa compaixão, é, apenas, uma reação.



Essas duas palavras são muito significativas: “resposta” e “reação”. A resposta está viva para a situação, ao passo que a reação é apenas um hábito arraigado: no passado, foste treinado para ajudar alguém que cai e, simplesmente, ajudas, mas não pões teu coração nisso. Alguém se está afogando no rio, tu corres e ajudas a pessoa somente porque foste treinado para isso. Permaneces fora do caso, teu coração ali não está, tu não respondeste. Não respondeste àquele homem, àquele homem que se estava afogando no rio. Respondeste àquele momento, seguiste uma ideologia.



Seguir uma ideologia é bom: ajuda todo o mundo, torna-te um servidor das pessoas, têm compaixão! Tens uma ideologia, e, através dela, reages. É do passado que vem a ação; e já está morta. Quando a situação cria a ação e tu respondes em plena consciência, só então, algo de belo acontece contigo.



Se reages por causa de uma ideologia, de velhos padrões de hábitos, nada ganharás com teu gesto. Podes ganhar, no máximo, um pequeno ego, que não é, absolutamente, um ganho. Podes começar a gabar-te de teres salvo um homem que se estava afogando no rio. Podes ir para a praça pública e gritar fortemente: - “Vejam! Eu salvei outra vida humana!” Podes ganhar um pouco mais de ego, por teres feito algo bom; mas isso não é um ganho. Perdeste uma grande oportunidade de ser espontâneo, de ser espontâneo na compaixão. Se respondes à situação, então algo floresce em ti, um desabrochar; e sentirás um certo silêncio, uma quietude, uma bênção.


Sempre que há uma resposta, tu florescer por dentro.



Sempre que há uma reação, permaneces morto;



agiste como um cadáver, agiste como um robô.



A reação é feia, a resposta é bela.



A reação é sempre da parte,



a reação nunca é do todo.



A resposta é sempre do todo,



tua inteira totalidade salta para o rio.



Não pensas naquilo,



a situação simplesmente faz com que aconteça.


Se tua vida se tornar uma vida de resposta e espontaneidade, um dia te tornarás um buda. Se tua vida se tornar uma vida de reação, de hábitos mortos, poderás parecer um Buda, mas não te tornarás um Buda. Serás um Buda pintado; por dentro serás apenas um cadáver. Os hábitos matam a vida. Os hábitos são contra a vida.



Todos os dias, como hábito adquirido, tu te levantas cedo; às cinco horas estás de pé. Na Índia, vemos muita gente fazer isso porque, na Índia, durante séculos, ensinou-se que Brahmamuhurt, antes de o sol nascer, é o momento mais auspicioso, o momento sagrado. E é. Mas não podes fazer disso um hábito, porque o sagrado só existe numa resposta viva. Eles se levantam às cinco horas, mas nunca verás em seus rostos a glória que surge quando te levantas cedo como uma resposta.



A vida inteira está se acordando em torno de ti: a terra inteira está esperando pelo sol, as estrelas desapareceram. Tudo está se tornando mais consciente! A terra dormiu, as árvores dormiram, os pássaros estão prontos para alçar vôo. Tudo está pronto, um novo dia começa, uma nova celebração.



Quando essa atitude é uma resposta, então tu te ergues como um pássaro, sussurrando e cantando; teus pés dançam. Isso não é um hábito, não se trata de teres de te levantar; não é por tal coisa estar nas escrituras que, sendo um devoto hindu, te levantas cedo, pela manhã. Se fizeres disso um hábito, não ouvirás os pássaros, porque os pássaros não estão registrados nas escrituras. Não verás o sol que se ergue, porque não basta levantar-se - tu estás seguindo uma disciplina morta.



Podes até ficar zangado, podes até ficar contra aquilo porque na véspera te deitaste tarde e não estás te sentindo bem para te levantares. Seria melhor que tivesses dormido um pouco mais. Não estavas pronto, estavas fatigado. Ou a noite passada não foi tão boa, sonhaste demais e todo o teu corpo sente-se letárgico - gostarias de dormir um pouquinho mais. Mas não; as escrituras rezam assim e assim foste ensinado deste tua mais tenra infância...



Na minha infância, meu avô era partidário das manhãs. Arrancava-me do meu sono mais ou menos às três horas - desde então não consigo levantar-me cedo. Ele me arrastava e eu o maldizia por dentro, mas nada podia fazer e saía com ele para uma caminhada; cheio de sono tinha de caminhar ao lado dele. Assim meu avô destruía toda a beleza do amanhecer.



Sempre que, mais tarde, eu tinha de sair para uma caminhada matinal, não podia perdoá-lo. Lembrava-me sempre dele. Destruíra tudo; durante anos, ele esteve continuamente me arrastando - contudo fazia algo bom; pensava que me estava ajudando a formar um estilo de vida. Mas essa não é a maneira certa: eu sonolento e ele me arrastando. O caminho era bonito, a manhã era bonita, mas ele destruía toda a beleza, ele me despojava. Só depois de muitos anos pude recuperar-me e andar pela manhã sem me lembrar dele. Antes sua lembrança estava comigo. Mesmo depois de morto, ele me seguia, como uma sombra, pela manhã.



Se fazes do levantar-te cedo um hábito, se o fazes como algo forçado, então a manhã torna-se feia. Nesse caso é melhor continuar a dormir. Mas sê espontâneo! Há dias em que não serás capaz de levantar-te - nada há de errado nisso, não estás cometendo um pecado. Se te sentes sonolento, o sono é belo - tão belo como qualquer manhã e tão belo como o nascer do sol, porque o sono pertence ao Divino, assim como o sol. Se tens vontade de descansar o dia inteiro, isso é bom!



Isso é o que o Tantra diz: Caminho Régio, ou seja, agir como um rei, não como um soldado. Não há ninguém acima de ti para forçar-te a dar-te ordens; obedecer não deve, realmente, ser um estilo de vida. Aquele é o Caminho Régio. Deves viver momento a momento, gozando momento a momento, e a espontaneidade deve ser a forma. Por que te preocupas com o amanhã? Este momento é o bastante. Vive-o! Vive-o em sua totalidade. Responde, mas não reajas. Nada de hábitos - esta é a fórmula.



Não estou dizendo para que vivas num caos, mas para que não vivas através de hábitos. Talvez, só por viver espontaneamente, uma forma de vida evolua em torno de ti, mas não será forçada. Se gostas da manhã todos os dias, e, por esse prazer te levantas cedo não por hábito, então levanta-te cedo todos os dias e faze-o durante toda a tua vida, que isso não será um hábito. Não te estás forçando a levantar-te - acontece. Isso é belo, gozas isso, amas isso.



Se acontece por amor, não é um estilo, não é um hábito, não é um condicionamento, não é uma coisa morta, cultivada. Menos hábitos, e estarás mais vivo. Nenhum hábito, e estarás completamente vivo. Os hábitos te cercam como uma crosta morta e tu és encerrado por ela; ficas como numa cápsula, como uma semente; uma célula te rodeia e é dura. Sê flexível.



A Ioga te ensina a cultivar o oposto de tudo o que é mau. Luta contra o mal e atende o bem. Se há violência, mata a violência em teu íntimo, torna-te não-violento, cultiva a não-violência. Faze sempre o oposto e força-o a tornar-se teu padrão. Essa é a maneira do soldado, um pequeno ensinamento.



Tantra é o Grande Ensinamento - o Supremo. Que diz Tantra? Tantra diz: não cries conflitos dentro de ti. Aceita ambas as coisas pois, através dessa aceitação, acontece uma transcendência; não uma vitória, mas uma transcendência. Em Ioga, há vitórias, em Tantra, não. Em Tantra existe apenas transcendência. Não que te tornes não-violento contra a violência; simplesmente passa para além de ambas essas coisas, simplesmente te tornas um terceiro fenômeno - uma testemunha.



Certa vez, eu estava sentado num açougue. O açougueiro era um homem muito bom e eu costumava visitá-lo. Era noite e ele já estava fechando quando um homem chegou e pediu uma galinha. Eu sabia, pois alguns minutos antes ele me dissera que tinha vendido tudo naquele dia, que apenas restara uma galinha. Assim, ele ficou muito feliz. Entrou, trouxe a galinha, atirou-a na balança e disse: - “São cinco rúpias.”



O homem disse: - “Está bem, mas vou fazer uma festa, muitos amigos virão e essa galinha parece muito pequena. Gostaria de levar uma que fosse maior.”



Bem, eu sabia que não havia mais nenhuma galinha, aquela era a única. O açougueiro meditou por um momento, levou a galinha de volta para outro compartimento, ficou ali por um certo tempo, voltou, atirou uma galinha na balança - a mesma - e disse: - “Está é de sete rúpias.”



O homem falou: - “Sabes de uma coisa? Vou levar as duas.”



Então o açougueiro ficou, realmente, num embaraço.



E Tantra causa o mesmo embaraço ao Todo, à Existência mesmo. Tantra diz: levarei as duas.



Não há duas. O ódio não é senão o outro aspecto do amor. E a cólera nada mais é do que o outro aspecto da compaixão. E a violência nada mais é do que a outra face da não-violência. Tantra diz: - “Sabe de uma coisa? Ficarei com as duas. Aceito as duas.” E, subitamente, através dessa aceitação, há uma transcendência, porque não há duas coisas. Violência e não-violência não são duas coisas. Cólera e compaixão não são duas. Amor e ódio não são dois.



Eis por que sabes, observas, mas estás tão inconsciente que não reconheces o fato. Teu amor se transforma em ódio dentro de um segundo. Como é possível que sejam dois? Nem mesmo um segundo é necessário: neste momento amas e, no momento seguinte, odeias a mesma pessoa. Pela manhã amas a mesma pessoa, à tarde a odeias, à noite tornas a amá-la. Na verdade, amor e ódio não são as palavras certas: ódio-amor, cólera-compaixão - são um só fenômeno e não dois. Por isso é que o amor se torna ódio e o ódio pode tornar-se amor; a cólera pode fazer-se compaixão e a compaixão pode tornar-se cólera.



Tantra diz que, a partir do momento em que tua mente estabelece divisão, começas a lutar. Crias primeiro a divisão: condenas um aspecto e aprecias outro. Crias primeiro a divisão, depois o conflito e ficas perturbado. E ficarás perturbado. Um iogue está constantemente perturbado porque tudo quando faz não produz a vitória final; no máximo, sua vitória pode ser temporária.



Podes recalcar a cólera e agir compassivamente, mas sabes bem que a recalcaste para o inconsciente e que ela ali está; a qualquer momento, um pouco de descuido e ela borbulhará, virá à tona. Por isso é preciso estar sempre a recalcá-la. É tão feio estar sempre recalcando as coisas negativas - a vida toda é desperdiçada. Quando gozarás o Divino? Não tens espaço, nem tempo. Estás lutando contra a cólera, a ganância, o sexo, o ciúme e mil outras coisas. Esses mil inimigos aí estão; tens de manter-te constantemente alerta, não podes nunca relaxar. Como é possível que sejas desprendido e natural? Estarás sempre tenso, esgotado, sempre pronto à luta, sempre receoso.



Os iogues tornam-se temerosos até de dormir, porque, dormindo, não podem estar atentos. No sono, tudo quanto recalcaram vem à superfície. Podem ter conseguido o celibato, enquanto estão acordados, mas nos sonhos isso é impossível - nos sonhos surgem belas mulheres, flutuando para dentro deles. E nada podem fazer. Aquelas belas mulheres não estão vindo de nenhum céu, como está escrito nas histórias hindus: Deus as mandou. Por que Deus estaria interessado no iogue? Um pobre iogue, não fazendo mal algum a ninguém, simplesmente sentado no Himalaia, de olhos fechados, lutando contra seus próprios problemas - por que Deus estaria interessado nele? E por que ele mandaria Ele apsaras, belas mulheres, para afastá-lo de seu caminho? Por quê? Não há ninguém ali. Não há necessidade de ninguém mandar ninguém. O iogue está criando seus próprios sonhos.



Tudo o que recalcas vem à tona nos sonhos. Os sonhos são a parte que o iogue negou. E tuas horas que passas o são tão tuas quanto teus sonhos são teus. Assim, se amas uma mulher em tua hora de vigília, ou a amas durante o sono, não há diferença; nem pode haver, porque não é uma questão de existir, de fato, uma mulher, ali, ou não; é uma questão que diz respeito a ti próprio. Se amas uma figura, uma figura de sonho, ou se amas uma mulher de verdade, não há diferença, realmente - uma mulher de verdade também é uma figura, por dentro. Jamais conheces realmente uma mulher, conheces apenas a figura.



Estou aqui. Como sabes que, realmente, estou aqui? Talvez seja apenas um sonho, talvez esteja sonhando que estou aqui. Qual será a diferença, se sonhas que estou aqui ou se me vês realmente aqui? Como estabelecerás a distinção? Qual é o critério? Porque, esteja eu aqui, ou não, não faz a menor diferença: tu me vês dentro de tua mente. Em ambos os casos - sonho ou realidade -, teus olhos recebem os raios, tua mente interpreta e diz que há alguém ali. Tu jamais viste uma pessoa real; não podes vê-las.



Por isso é que os hindus dizem que este mundo é maya, um mundo ilusório. Tilopa diz: “Transitório, fantasmagórico, espectral, visionário é este mundo. Por quê? Porque, entre o sonho e a realidade, não há diferença. Em ambos os casos, estás confinado à tua mente. Vês apenas as figuras; jamais viste a realidade - e nem poderás vê-la, porque a realidade só poderá ser vista quando tu fores real. Se tu és um fenômeno espectral, uma sombra, como podes ver o que é real? A sombra só pode ver a sombra. Poderás ver a realidade apenas quando a mente for abandonada. Através da mente tudo se torna irreal. A mente projeta, cria, dá colorido, interpreta - tudo se forma falso. Daí a ênfase, a contínua ênfase em como abandonar a mente.



Tantra diz: não lutes. Se lutares, poderás continuar tua luta por muitas vidas e nada acontecerá por esse caminho, porque, em primeiro lugar, cometeste um engano - onde viste dois, havia apenas um. E se perderes o primeiro passo, não poderás, sem ele, atingir a meta. Toda a tua passagem será uma contínua perda. O primeiro passo tem de ser dado com absoluta certeza; de outra maneira jamais atingirás a meta.



E o que é absolutamente certo? Tantra diz que é ver um em dois, ver um em muitos. No momento em que vires um na dualidade, já se terá iniciado a transcendência. Esse é o Caminho Régio.


Agora tentaremos compreender o sutra.


Transcender a dualidade é visão soberana.


Transcender, não vencer - transcender. Essa palavra é muito bela. Que significa transcender?


Observa uma criancinha brincando com seus brinquedos. Tu lhe dizes que os guarde e ela fica zangada. Mesmo quando vai dormir leva seus brinquedos e a mãe tem de removê-los depois de ela adormecer. Pela manhã, a primeira coisa que pergunta é onde estão seus brinquedos e quem os levou dali. Mesmo seu sonho refere-se aos brinquedos. Então, de súbito, um dia, a criança esquece os brinquedos. Durante alguns dias, eles permanecem num canto de seu quarto e, então, são removidos ou deitados fora. Nunca mais ela pergunta onde estão. Que aconteceu? Ela os transcendeu; tornou-se madura. Não foi uma luta e uma vitória; não houve luta contra o desejo de ter brinquedos. Não. De súbito, um dia, ela percebeu que aquilo é infantil, que ela não era mais uma criança. De súbito, compreendeu que brinquedos são brinquedos, não são a vida real; e que ela estava pronta para a vida real. Voltou as costas aos brinquedos. Nunca mais eles apareceram em seus sonhos, nunca mais pensou neles. E, ao ver outras crianças brincando com brinquedos, sorri; sorri, um riso de quem conhece, um riso sábio. Diz: - “É uma criança, ainda infantil, brincando com brinquedos.” Ela transcendeu.



A transcendência é um fenômeno muito espontâneo. Não deve ser cultivada. Tu simplesmente amadureces. Vês, simplesmente, o quanto certas coisas são absurdas... e transcendes.



Um jovem aproximou-se de mim, muito preocupado. Tinha uma bela esposa, mas a moça possuía um nariz um tanto comprido. Ele estava preocupado e me perguntou: - “Que fazer?” Mesmo a cirurgia plástica já havia sido tentada, porém o nariz ficara um pouco mais feio, porque nada havia de errado com ele e, quando tentamos melhorar algo que nada tem de errado, esse algo torna-se feio, mais feios; torna-se um transtorno. Agora, o rapaz estava mais perturbado e perguntou-me o que devia fazer.



Falei-lhe sobre os brinquedos, dizendo: - “Um dia terás de transcender. Isso é infantil - por que estás tão obcecado com um nariz? O nariz é apenas uma pequenina parte e tua esposa é bonita, uma pessoa tão bonita - por que a estás entristecendo com essa questão do nariz? Ela também se tornou vulnerável a propósito do nariz. E esse nariz acabou por se fazer todo o problema da vida. E todos os problemas são assim! Não penses que teu problema é algo maior - todos os problemas são iguais ao teu. Todos os problemas são criados pela infantilidade, juvenilidade; nascem da imaturidade.



O jovem estava tão preocupado com o nariz que nem olhava para o rosto da esposa, pois a cada vez que via o nariz, sentia-se perturbado. Realmente, não conseguimos superar tão facilmente certas coisas. Mesmo que não olhes para um rosto por causa do nariz, ainda assim tu te lembrarás desse nariz. Mesmo que tentes fugir, o caso ali está. Estás obcecado. Assim, eu disse a ele que meditasse sobre o nariz da esposa.



Disse ele: - “Quê? Eu nem posso olhar para ele.”



Mas eu retorqui: - “Isso vai ajuda; simplesmente medita sobre o nariz. Antigamente, as pessoas costumavam meditar sobre a ponte de seus próprios narizes; portanto, o que há de errado em meditar sobre a ponta do nariz de tua esposa? Tenta isso!”



Perguntou: - “Mas que virá dessa meditação?”



“Tenta, apenas - disse-lhe eu - e depois de uns tantos meses vem contar-me o que aconteceu. A cada dia, faze com que ela se acomode à tua frente e começa a meditar sobre o nariz dela.”



Um dia ela chegou, correndo para mim e disse: - “Que tolice andei fazendo! De súbito, transcendi. Toda a loucura daquilo se tornou visível - agora já não há problema.”



Ele não estava vitorioso, porque, na verdade, não havia inimigo para ser vencido. Tu não tens inimigos - isso é o que Tantra diz. A vida toda é profundamente amorosa em relação a ti. Não há ninguém para ser destruído, ninguém para ser conquistado; ninguém é inimigo, não há um desafeto para ti. A vida toda te ama. De toda parte o amor flui.



E em teu íntimo, também não há inimigos; os inimigos foram criados pelos sacerdotes, eles criaram um campo de batalha, transformaram-te num campo de batalha. Dizem: - Combate isto, isto é mau! Criaram tantos inimigos, que estás cercado por eles e perdeste o contato com toda a beleza da vida.



Eu te digo: a cólera não é tua inimiga, a ganância não é tua inimiga e nem a compaixão é tua amiga, nem a não-violência é tua amiga - porque, amigos ou inimigos, tu permaneces com a dualidade.



Olha apenas para o todo do teu ser e verás que ele é um. Quando o inimigo se torna amigo e o amigo se torna inimigo, toda a dualidade está rompida. De repente, há a transcendência, de repente há o acordar. E eu te digo que isso é súbito; quando lutas, tens de lutar polegada por polegada, mas aqui não se trata absolutamente de uma luta. Essa é a maneira dos reis - o Caminho Régio.



Tilopa diz: “Transcender a dualidade é visão soberana.” Transcende a dualidade!



Observa apenas, e verás que não há dualidade.



Bodhidharma foi à China, uma das mais raras jóias jamais nascidas. O Rei veio vê-lo e disse: - “Às vezes sinto-me bastante perturbado. Às vezes há muita tensão e muita angústia em mim.”



Bodhidharma fitou-o e disse: - “Vem amanhã cedo, às quatro horas, e traze toda a tua angústia, as ansiedades, as perturbações contigo. Lembra-te, não venhas sozinho - traze todas elas.



O Rei olhou para Bodhidharma - que tinha um aspecto muito estranho, capaz de matar alguém de medo - e disse: - “Que estás dizendo? Que significa o que disseste?”



Bodhidharma disse: - “Se não me trouxeres essas coisas, como poderei pôr-te em bom estado? Traze todas e tudo será acertado.”



O Rei pensou: - “É melhor não ir. Às quatro horas da manhã ainda está escuro e este homem parece meio louco. Com esse grande cajado na mão poderá até bater-me. E que quer ele dizer quando fala em acertar tudo?”



Não pôde dormir a noite inteira, porque a figura de Bodhidharma o perseguia. Pela manhã sentiu que seria melhor ir, “porque, quem sabe? Talvez ele possa fazer alguma coisa.”



Assim, foi, resmungando, hesitante, mas lá chegou. A primeira coisa que Bodhidharma perguntou - e ele estava sentado diante do templo, com o cajado na mão, parecendo ainda mais perigoso no escuro - foi: - “Então, vieste! Onde estão aqueles outros dos quais me falaste?”



O Rei disse: - “Tu falas por enigmas; não há nada que eu pudesse trazer. Eles estão dentro de mim.”



Disse Bodhidharma: - “Muito bem. Dentro e fora, as coisas são coisas. Senta-te, fecha os olhos e tenta procurá-los dentro. Agarra-os imediatamente, avisa-me e olha para o meu cajado. Eu vou acertar com eles!”



O Rei fechou os olhos - nada mais podia fazer -, fechou, pois, os olhos, um tanto amedrontado; olhou para dentro, aqui e ali, observou e, subitamente, tornou-se consciente de que quanto mais olhava nada via - nem ansiedade, nem angústia, nem perturbação. Caiu em profunda meditação. Passaram-se horas, o sol começou a nascer e no rosto dele havia um tremendo silêncio.



Então, Bodhidharma disse-lhe: - “Abre os olhos, agora. Isso já é o bastante! Onde estão aquelas coisas? Pudeste agarrá-las?”



O Rei sorriu, fez uma reverência, tocou os pés de Bodhidharma, e disse: - “Tu realmente as acertaste, porque não as encontrei e, agora, sei o que se passava. Em primeiro lugar, não estavam ali. Pensei que existissem porque nunca entrei dentro de mim mesmo para olhá-las. Estavam ali porque eu não estava presente lá dentro. Agora sei; fizeste o milagre.”



E foi isso o que aconteceu. Isso é transcendência; antes de resolver um problema, verifica, em primeiro lugar, se há mesmo um problema. Primeiro crias o problema e, depois, começas a buscar uma solução. Primeiro crias a pergunta e, depois, dás a volta ao mundo e sei que, se observares a pergunta, ela desaparecerá; não haverá necessidade de uma resposta. Se observares a pergunta, a pergunta desaparecerá - e isso é transcendência. Não é uma solução, já que não existe pergunta alguma para ser respondida. Não estás doente. Observa internamente e não encontrarás a doença: então, que necessidade há de uma solução?


Cada homem é como deve ser.

Cada homem nasce como rei.
De nada carece,
não precisa melhorar.


E as pessoas que tentam melhorar-te destroem-te; são os verdadeiros fabricantes do mal. E há muitas que permanecem à espreita, como gatos espreitam camundongos: tu te aproximas, elas saltam sobre ti e começa, imediatamente, a melhorar-te. Há muitos melhores, por isso é que o mundo está nesse caos; há gente demais tentando melhorar-te.


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